terça-feira, 9 de agosto de 2011

tenho um velho amigo

*

aos vinte ou quarenta os poemas de amor têm uma força directa,
e alguém entre as obscuras hierarquias apodera-se dessa força,
mas aos setenta e sete é tudo obsceno,
não só amor, poema, desamor, mas setenta e sete em si mesmos
anos horrendos,
nudez horrenda,
vê-se o halo da aparecida, catorzinha, onda defronte, no soalho, para cima,
rebenta a mais que a nossa altura,
brilha com tudo o que é de fora:
quadris onde a luz é elástica ou se rasga,
luz que salta do cabelo,
joelhos, púbis, umbigo,
auréolas dos mamilos,
boca,
amo-te com dom e susto,
eles dizem que a beleza perdeu a aura, e eu não percebo, creio
que é um tema geral da crítica académica: dessacralização, etc., mas
tenho tão pouco tempo, eis o que penso:
décimo quarto piso da luz e, no tôpo, a, tècnicamente definida, lucarna, que é por onde se faz com que a luz se faça,
e a beleza é sim incompreensível,
é terrível, já se sabia pelo menos desde o Velho Testamento,
a beleza quando avança terrível como um exército,
e eu trabalho quanto possa pela sua violência,
e tu, catorze, floral, toda aberta e externa, arrebata-me nos meus setenta e sete vezes êrro
de sobre os teus soalhos até à eternidade,
com o apenas turvo e sôfrego
tempo onde muito aprendo que só me restam indecência, idade, desgovêrno,
e sim, pedofilia, crime gravíssimo
¿ mas como crime, pedofilia, se a beleza, essa, desencontrada
nas contas, é que é abusiva?
e se me é defesa, e terrível como um exército que avança, eu,
setenta e sete de morte e teoria:
o acesso à música, o rude júbilo, o poema destrutivo, amo-te
com assombro,
eu que nunca te falei da falta de sentido,
porque o único sentido, digo-te agora, é a beleza mesmo,
a tua, a proibida, entrar por mim adentro
e fazer uma grande luz agreste, de corpo e encontro, de ver a Deus se houvesse, luz terrestre, em mim, bicho vil e vicioso




[do "A faca não corta o fogo", Herberto Helder.]

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