sábado, 31 de dezembro de 2011

"ninguém foge da minha raia", diz a menina batendo os pézinhos de pato.
e quando falei em "mas não vamos ter medo",

o que eu quero pra 2012? calma
no descontrole.

ou como m.a. me disse:

"em vê:
olhos que vêem, que somente vêem
olhos que semeiam
(o visto em vida)

é isso índia, no farejo do fruto
vamos
mas que os próprios olhos sejam
frutos
negros
nada adivinhando
vendo porque vivendo"

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

quase vinte e oito

Horizonte de uma seriedade.

Eu querendo sonhar com a história – quanta pretensão, pelo menos quanta pretensão fazê-lo sem sofrimento.

Dois dias depois ele me disse ESTOU DE LUTO e preciso mudar de país.

Dois dias depois dos dois dias depois é Natal.
Aquele choro na vovó. Digo Amém ao telefone.

Dois dias depois dos quatro dias depois dobro a esquina da minha casa que fica de frente para a baía – que eu quis ter – viro a esquina pensando “o corpo este inimigo”.

O horizonte de uma seriedade é que a última vez que eu pensei isto eu mudei de país.
Eu quis ter a minha janela para a baía e tenho.

Sonho que cago nas calças do uniforme e todo mundo vê. Sonho que apanho um comboio e encontro uma pessoa muito chata dos tempos antigos em que usávamos uniformes. Que troco de comboio e ele me leva para o lugar errado.

Tudo fica azul escuro e eu só consigo prestar atenção em como os feixes de músculos no meu corpo me controlam. Escrevo um poema para a minha mãe.

A mulher na casa de fotocópias entra reclamando do filho, que teve horas em parto, vestido de azul o recém-nascido colado ao peito, ela diz em tempos de crise só um filho é muito em tempos de crise um filho é muito em tempos de crise.

Nasceu no inverno.
Um mês antes do que eu, que nasci no verão.

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

gente fina, elegante e sincera

a palavra com a qual eu termino o ano é: abdicar.

desde que cheguei aqui Portugal me ensina, em muitos sentidos, a abdicar.
digo isso porque aprendi que há certos ritmos de silêncio entre as pessoas que criam vínculos entre elas. guardar a intimidade muitas vezes é criá-la. digo isso porque abdiquei de muita gente, muitas vezes. do amor. de ter. de gastar. viver com menos. digo isso pra mim mesma, não vou me explicar de novo que Portugal me ensina a abdicar. talvez até dele mesmo, o cabrão.


abdicar
n verbo
 regência múltipla
1    renunciar por vontade própria (a poder soberano ou autoridade suprema)
Ex.:
 transitivo direto, transitivo indireto e pronominal
2    renunciar ou desistir de; privar(-se)
Ex.:


nesta última semana o primeiro ministro daqui disse pros professores migrarem pr'outros países da nossa língua, nomeadamente, angola e brasil.

a manchete do principal jornal na manhã do dia 24 de dezembro deste ano que ainda corre era - quando eu abri a internet pra ver - 75% do subsídio desemprego será cortado no ano que vem.

a galera vai passar fome, já está. não tô de exagero. não.

abdicar.

não precisava ser assim, mundo. não precisava não.

há a memória, amém

vou bebendo chá de tília
enquanto a europa não acaba.

na casa do meu namorado fica rosa.
eu olho bem pra quela cor quase acintosa de prazer e penso: hm proust hmmmm sei sei
sei.
não percebo
porque agora sozinha
aqui é só amarelado.

acho que é o nosso amor.

domingo, 25 de dezembro de 2011

2012

vamos fazer um caminho mais curto em direção ao fim do mundo
desta vez
ou não
vai ser impossível observar os flamingos
que ali, de tão parados
provavelmente são de plástico.

por aqui os chineses andaram comprando as coisas da terra daqui.
que não é chinesa.
nem nunca será.

neste momento considerei a possibilidade de ter acima cometido uma profecia, porém errada.

será caso notável no dia dos olhos de alguém, muito futuros, e tão murchos quanto os nossos, conforme os anos passam, olhando as coisas que mudam e as coisas que não mudam, repararem no delicado equívoco da inocência que todos temos, por estarmos todos em nós procriados o nosso tempo.
e seguiremos ouvindo mercedes sosa.

herberto helder escreveu:

"E sempre assim, sempre: cidades inexplicáveis onde se tem medo. Prados para vacas, não para um poeta di-la-ce-ra-do por uma tormentosa inocência".

a minha tormentosa inocência, no fim de todos os anos sabe que é melhor avantajar o bem dos possíveis, do que os nãos, incabíveis.
 - já tenho idade pra saber que os anos se passarem aos cavalares, alternam em nós as posições de: cavaleiro, corda do poste para amarrar o cavalo, cavalo em si, estrebaria, pista de corrida, feno feno e pasto.

este ano assisti fritzcarraldo, do herzog, com meu pai em são paulo e, vocês sabem, que no fundo meu intento é ser ele.

se você recebeu este meu sinal de mensagem, é porque te amo. assim, fim do ano é aquele momento em que nos deixamos ser vulneráveis e me deixa dizer que te amo, beibe. isto tudo vem bem a propósito. ser mais inteirão. e se eu te amo, é porque eu espero que o ano que vem te seja impossível.

enquanto por aqui seguirei do meu traço, o rastejado.

e conto com vocês para tirarmos todas as botas que nos pisam de cima, pelos lados.

o peito ao acordar: aberto.
quem sabe dar uns gritos, ir ao campo e encontrar resistência na fuligem.
fogueiras. e amores-ímãs,
onde, nos resta saber em que lado é que as peças se encaixam.

para o ano que vem sonho:
corpo de gato, nave de platina.
um mundo menos supérfulo e mais gratuito.
ar aberto
mar floresta
montanha sobre montanha
uma violência cômica.
tudo do seu tamanho.
e alternativas.

sinceramente,

beijos muitos,

júlia.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

dos sonhos eu sou o amor

tcharans

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

rinite sinusite e outras otites

estou densa pela testa
que me avance e meça

quanto frio é para um cavalo enfrentar o frio de dentes
é preciso ter muitas faces
uma primeira arreganhada
ser só tendões: ele me disse: que gostava de ter limites

e quando o vento batia muito forte
sacolejava pelo pescoço
até soltar do nariz

saburra, sem nojo,
meu frio no chão da rua, verniz

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

perigo prático

ele me liga e pede pra que eu veja no google uma coisa que descubro que aconteceu em Himmelpfortgrund.

já terminei a carta pro fedelho. pratico pilates depois de um dia todo na frente do computador e dos livros. amanhã vou copiar um trecho de cada texto e comentá-los. assim começará o meu dia. vou ficando uma pessoa tão prática, um dia as coisas práticas ainda vão tanto me comer que vou escrever a lista de supermercado de amanhã aqui:

*limpa tudo
*carne
*courgete ou gourgete (abobrinha)
*arroz para risoto
*

antes mudei a casa toda de lugar. o varal ainda tá no corredor. minha toalha lambeu o pó quando ele sem querer se dobrou. deixei lá. tudo jogado. no fim de semana ele me mostrou como é que gosta da toalha pendurada. reli tudinho que tinha quê. amanhã tem também o capítulo sobre o futuro. e quando resolvo me deitar levo a era dos extremos - o breve século xx 1914-1991 pro redor da minha cabeceira, pra ler antes de dormir. acho que quando alguém considera leitura prévia do sono a história do século xx - - - algo inominável que eu ia dizer aqui - embora nem sempre ande considerando o sono aquela onda fácil - - não sei onde vai é que vai dar o relaxamento, ô vem cá, meu perigo. atroz,
pensei numa exposição que revelasse todos os negativos
lado a lado cabeça a cabeça os últimos rolos da minha vida
mas daqui uns quatro anos
ou mais ou menos.

pedem de mim definições: é a poesia moderna.

quem me chama de casa sou eu mesma. neste frio alucinatório. 
o amor vai bem, obrigada. ontem assistimos fanny och alexander.
passei o dia todo de hoje vendo o filme nas minhas retinas leitoras. 
ele estava com a pressa de quem está com frio. eu com o trabalho de quem tem prazos.

sou incapaz de tantas coisas. mas desta não sou.

meu sangue latinu-u u uuu.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

cabrum

chucrute inter-estelar
they were trying to contact the brain spirit
deu nisso

agosto de 2008

sou só eu que acordo todo dia como se estivesse crua?
paulinho é incapaz
de fazer susto numa mosca
de roupa azul vai descendo
paulinho quando tem fome
paulinho antes quer dormir

da série: relatos de um dia útil

tirar o som do computador
passar pelas caixas do corpo
entre os fios que se amarram nas pernas da mesa
encontrar a boneca do tamanho de um dedo
que meus pais me deram de um museu californiano
ou chileno - convidaram meu pai para ir a kyoto
mas ele disse que não, que eram muitos papéis
ontem ouvi 4 discos do zeca afonso em seguido
e quando encontrei a boneca por dentro dos fios
a boneca branca que parece que é grega
de tanto que me olha a boneca branca
me acalma, como a música do zeca que tocava
naquela hora que já era hoje
e eu já tinha ido ao supermercado
continuava sentando na cadeira torta
arredia a qualquer espécie de obrigação
mas agora com a boneca de volta
em cima da mesa
eu com a coluna torta
o zeca no último acorde

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

cavalos cavalos entre os nossos reparte

"O sentimento de profundo bem-estar que a árvore sente subir das raízes, o prazer de saber que não se é um ser puramente arbitrário e fortuito, mas que se vem de um passado de que é herdeiro, flor e fruto, e que por este motivo se está justificado do que se é, a isto podemos nós chamar hoje o verdadeiro sentido histórico.

Sem dúvida, não é o estado mais favorável para transformar o passado num puro saber." 

disse o Nietzsche em "Considerações Intempestivas"

você tem/ você tem/ que me dar/ seu coração

aquele que vem antes nunca chegará depois

Ânimo de Poeta.
[Segunda versão]

Pois não são todos os vivos teus irmãos?
Não te alimenta, posta a teu serviço, a própria Parca?
Avança então, sem armas,
Vida fora, e nada receies!

Bendito seja sempre para ti o que acontece!
Abre-te à alegria! Que pode, afinal,
Fazer-te ofensa, coração? Que coisa
Atravessar-se no caminho que é o teu?

Pois desde que o canto se soltou de lábios
Mortais, respirando paz, e a nossa melodia,
Bálsamo na dor e na fortuna, alegrou
O coração dos homens, também nós,

Bardos do povo, nos sentimentos bem entre os vivos,
Onde muitas coisas convivem, alegres e a todos dadas,
Abertas a todos; assim é
Nosso antiquíssimo pai, o deus Sol,

Que a pobres e ricos concede o dia alegre,
Que no tempo fugaz a nós, efémeros,
Erectos nos mantém em andadeiras
De ouro, como crianças.

A ele espera-o, acolhe-o também, quando a hora
Vem, a sua maré purpúrea. Olha como declina
A nobre luminária, ciente de que tudo passa,
Descendo, imperturbável, pelo caminho!

Assim passe também, quando o tempo chegar
E ao espírito no mundo inteira justiça for feita,
A nossa alegria! Assim ela possa um dia morrer
Na plenitude da vida, e de uma morte bela!


[Friedrich Hölderlin em tradução de João Barrento]

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

a poeta então sobe
dez metros
cintila e EXPLODE.

um blogue serve

início de fim de ciclo. às vezes fecho os olhos e acho que é para sempre. é que estou escrevendo e escrever não inibe as pausas, antes, usa-as. fico fazendo um cinturão de dança ao redor de tudo. e estou triste por ser fim do mês e ainda não ter dinheiro pra comprar um caderno novo. aqui não posso contar aquelas coisinhas que se abrissem meus diários saltavam. sei que é ali que estão nascendo todos os caranguejos do mundo, aqueles que vão arrancar os olhos das coincidências e interpretá-las. que não seja como barro de mangue, 

fico pensando em um jeito do fim não ser sempre uma hecatombe, mas também as coisas precisam de pontos finais. e depois deles só se começa depois (estou falando de março, digo só pra que eu saiba ao reler).

é que eu processo quedas como saídas,
e saídas como entradas - estou longe e perto - viajo, te verso
e tem vezes que sou incapaz de reler antes de postar.

domingo, 4 de dezembro de 2011

um dia a gente chega

o que tem me impressionado neste amor é a capacidade dele de ser do mundo/ não meu, nem dele, nem de ninguém. meu amor, o amor é do mundo.

isto vejo nos teus olhos.
o amor não deixa desvios vingarem.
e, muitas vezes, o amor é a pura prática de desvios.

o amor quando a gente olha nos olhos e não é miragem
crocodilagem.

jagunçagem

saturno
conjunto a marte-plutão
sextil júpiter-netuno-mercúrio
oposto à lua
amigão

they're waiting



sábado, 3 de dezembro de 2011

vapor quando a jaguatirica abre a boca é de manhã

do limbo despertaram seis ameijôas amestradas faliram com a mariscada da praia de copacabana quando o tataravô português que certamente devo ter tido matou o primeiro índio. a morte é uma sorte dos meus ancestrais, eu ainda não a tive. não sei avisar a órbita dos planetas para que parem. noite dessas pari um acaso danado, depois percebi que era só a rua me deixando passar.

maria minha recente maria recebe um beijo.

acidente de estrelas inibe colisão entre duas árvores que se beijavam

um acidente de estrelas nessa manhã foi um acontecimento invejável em pleno espaço público. a galáxia já disse que vai tomar providências. ativistas de júpiter decidiram pela proliferação de novos cometas. na terra, as plantas ainda crescem.
tava passando
fui atropelada
daí renasci
suntuoso luxo
investido - sabe
investido sabe onde?
numa carne, o coração
aperta
parece que enfarta
a garganta
avião da voz
viaja como uma pele
pede resgate
não se encolhe
assim quando
tu te vens
caldo do céu
solidão que nada

ai força da viagem viu

não sei o que é que está nos acontecendo - mas é muito bonito.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

de um, muitos, "não sei", vamos juntos

O discurso de Wislawa Szymborska na Academia Sueca foi traduzido do inglês por Rubens Figueiredo.

"Dizem que a primeira frase de um discurso é sempre a mais difícil. Bem, ela já ficou para trás. Mas tenho a sensação de que as frases ainda por vir - a terceira, a sexta, a décima e assim por diante, até a última linha - serão igualmente difíceis, pois tenho de falar sobre poesia. Falei muito pouco sobre o assunto - quase nada, de fato. E sempre que falei me veio a furtiva suspeita de que não sou muito boa nisso. Portanto, minha palestra será bem curta. A imperfeição é mais fácil de tolerar em doses pequenas.

Os poetas contemporâneos são céticos e desconfiados até, ou talvez sobretudo, de si mesmos. Só com relutância confessam publicamente ser poetas, como se tivessem um pouco de vergonha. Mas em nossos tempos estrepitosos é mais fácil reconhecer nossos erros, ao menos se estiverem atraentemente embalados, do que reconhecer os próprios méritos, pois estes se mantêm ocultos mais no fundo, e nós mesmos nunca acreditamos muito neles... Quando preenchem fichas ou batem papo com estranhos - ou seja, quando não podem deixar de revelar sua profissão -, os poetas preferem usar o termo genérico "escritor" ou substituir "poeta" pelo nome de qualquer outro trabalho que façam, além de escrever. Burocratas e passageiros de ônibus reagem com um toque de incredulidade e alarme quando descobrem que estão tratando com um poeta. Creio que os filósofos enfrentam reação semelhante. Contudo, estão numa posição melhor, pois na maioria das vezes podem ornamentar seu ofício com algum tipo de título universitário. Professor Doutor de Filosofia: isso sim soa muito mais respeitável.

Mas não existem professores de poesia. Afinal de contas, isso significaria que a poesia é uma ocupação que requer um estudo especializado, exames regulares, ensaios teóricos com bibliografia e notas de rodapé anexadas e, por fim, diplomas conferidos com pompa. E significaria, em troca, que não basta encher páginas de poemas, mesmo os mais primorosos do mundo, para tornar-se um poeta. O fator decisivo seria um pedaço de papel que traz um selo oficial. Lembremos que o orgulho da poesia russa, o futuro ganhador do Prêmio Nobel Joseph Brodsky, foi certa vez condenado ao exílio em seu próprio país justamente com base nessa idéia. Chamaram-no de "parasita" porque não possuía o certificado oficial que lhe assegurava o direito de ser poeta.

Há muitos anos, tive a honra e o prazer de encontrar com Brodsky. Notei que, de todos os poetas que eu conhecia, ele era o único que gostava de se chamar de poeta. Pronunciava a palavra sem inibição. Ao contrário: ele a falava com uma liberdade desafiadora. Isso devia ocorrer, é o que me parece, por causa da lembrança das humilhações que sofreu na juventude.

Em países mais afortunados, onde a dignidade humana não é agredida tão facilmente, os poetas almejam ser publicados, lidos e compreendidos, mas fazem pouco, ou quase nada, para se situarem acima do rebanho geral e da roda-viva do dia-a-dia. No entanto, ainda não faz tanto tempo, os poetas se esforçavam para nos escandalizar com suas roupas extravagantes e seu comportamento excêntrico. Tudo isso era só para encher os olhos do público. Sempre chegava a hora em que os poetas tinham de fechar a porta atrás de si, despir suas capas, seus penduricalhos e outras parafernálias poéticas e enfrentar - em silêncio, com paciência, à espera de si mesmos - a folha de papel ainda em branco. Pois, no final, é isso o que de fato conta.

Não é por acaso que filmes biográficos sobre cientistas e artistas célebres são produzidos aos montes. Os diretores mais ambiciosos tentam reconstituir de forma convincente o processo criativo que gerou importantes descobertas científicas, ou o surgimento de uma obra-prima. E se pode retratar certos tipos de atividade científica com algum sucesso. Laboratórios, instrumentos diversos, máquinas complicadas em ação: tais cenas podem prender o interesse da platéia durante algum tempo. E aqueles momentos de incerteza - será que a experiência, realizada pela milésima vez com uma ínfima alteração, produzirá por fim o resultado desejado? - podem ser dramáticos. Filmes sobre pintores podem ser espetaculares, enquanto recriam todos os estágios da evolução de um pintor famoso, desde o primeiro traço a lápis até a pincelada definitiva. A música se expande nos filmes sobre compositores: os primeiros compassos da melodia que soa nos ouvidos do músico emergem, no fim, como uma obra madura em forma sinfônica. Claro, tudo isso é ingênuo, e não explica o estranho estado mental popularmente conhecido como inspiração, mas pelo menos existe algo para se olhar e se ouvir.

Mas os poetas são os piores. Seu trabalho, inapelavelmente, nada tem de fotogênico. Alguém senta a uma mesa ou deita num sofá enquanto olha imóvel para a parede ou para o teto. De quando em quando, essa pessoa escreve sete linhas, só para riscar uma delas quinze minutos depois, em seguida mais uma hora se passa, durante a qual nada acontece... Quem agüentaria assistir a esse tipo de coisa?

Mencionei a inspiração. Poetas contemporâneos respondem de forma evasiva quando lhes perguntam o que é isso, e se existe de verdade. Não é que nunca tenham conhecido a bênção desse impulso interior. Só que não é fácil explicar a uma outra pessoa aquilo que você mesmo não compreende.
 
Quando ocorre de me perguntarem sobre o assunto, também me esquivo. Mas minha resposta é esta: a inspiração não é um privilégio exclusivo de poetas e artistas. Existe, existiu, existirá sempre certo grupo de pessoas a quem a inspiração visita. É formado por todos aqueles que conscientemente escolheram sua vocação, e fazem seu trabalho com amor e imaginação. Pode incluir médicos, professores, jardineiros - eu poderia fazer uma lista de mais de cem profissões. Seu trabalho se torna uma aventura constante, enquanto forem capazes de continuar a descobrir nele novos desafios. Difi¬culdades e reveses nunca sufocam a sua curiosidade. Um enxame de questões novas emerge de cada problema que eles solucionam. Seja lá o que for a inspiração, ela nasce de um contínuo "não sei".

Não existem muitas pessoas assim. A maioria dos habitantes da Terra trabalha para ganhar a vida. Trabalham porque têm de trabalhar. Não escolhem este ou aquele tipo de trabalho por paixão; as circunstâncias de suas vidas fizeram a escolha por eles. Trabalho sem amor, trabalho maçante, trabalho cujo mérito consiste no fato de que outros nem isso têm - aí está uma das mais penosas desventuras humanas. E não há sinal de que os séculos vindouros produzirão qualquer melhora em relação a este estado de coisas.

Assim, embora eu possa recusar aos poetas o monopólio da inspiração, ainda os situo num grupo seleto de favoritos da Fortuna.

Neste ponto, certas dúvidas podem surgir na minha platéia. Toda sorte de torturadores, ditadores, fanáticos e demagogos que lutam pelo poder com um punhado de retumbantes palavras-de-ordem também gostam de seu trabalho, e também cumprem suas obrigações com um fervor inventivo. Bem, está certo: mas eles "sabem", e o que quer que saibam é o suficiente para eles, de uma vez por todas. Não querem descobrir mais nada, uma vez que isso pode reduzir a força de seus argumentos. Mas todo conhecimento que não leva a perguntas novas se extingue depressa: não consegue manter a temperatura necessária para a conservação da vida. Em casos extremos, bem conhecidos desde a antiguidade até a história moderna, chega a representar uma ameaça letal à sociedade.

É por isso que dou tanto valor à pequena frase "não sei". É pequena, mas voa com asas poderosas. Expande nossa vida para incluir espaços que estão dentro de nós, bem como as vastidões exteriores em que a nossa minúscula Terra pende suspensa. Se Isaac Newton nunca tivesse dito a si mesmo "não sei", as maçãs do seu pequeno pomar poderiam ter caído no chão como uma chuva de granizo - no máximo, teria parado para pegá-las e devorá-las com deleite. Se a minha compatriota Marie-Curie Sklodowska nunca tivesse dito a si mesma "não sei", na certa acabaria lecionando química em alguma faculdade particular para mocinhas de boas famílias, e terminaria seus dias cumprindo esse trabalho, de resto perfeitamente respeitável. Mas ela não parou de dizer "não sei", e essas palavras levaram-na, não só uma vez, mas duas, a Estocolmo, onde espíritos inquietos, indagadores, são de tempos em tempos contemplados com o Prêmio Nobel.

Poetas, se autênticos, também devem repetir "não sei". Todo poema assinala um esforço para responder a essa afirmação, mas assim que a frase final cai no papel, o poeta começa a hesitar, a se dar conta de que essa resposta particular era puro artifício, absolutamente inadequada. Portanto, os poetas continuam a tentar e, mais cedo ou mais tarde, os resultados da sua insatisfação consigo mesmos são reunidos, e presos num clipe gigante pelos historiadores da literatura, e passam a ser chamados de suas "obras".

Às vezes, sonho com situações que não podem virar realidade. Imagino, por exemplo, que tenho uma chance de trocar umas palavrinhas com o autor do Eclesiastes, aquele comovente lamento sobre a vaidade de todos os esforços humanos. Curvo-me profundamente diante dele, pois é um dos maiores poetas, pelo menos para mim. Depois seguro a sua mão. "Não há nada de novo sob o sol - foi o que você escreveu. Mas você mesmo nasceu novo sob o sol. E o poema que criou é também novo sob o sol, uma vez que ninguém o havia escrito antes de você. E todos os seus leitores são também novos sob o sol - aqueles que viveram antes de você não puderam ler o seu poema. E esse cipreste sob o qual está sentado não cresceu desde o início dos tempos. Nasceu de um outro cipreste semelhante ao seu, mas não exatamente igual.

E, Eclesiastes, eu também gostaria de lhe perguntar que coisa nova sob o sol está agora em seus planos de trabalho. Um suplemento adicional às idéias que já expressou? Ou talvez esteja agora tentado a contradizer algumas delas? Em sua obra inicial, você fez menção à alegria - de que adianta se é fugaz? Então, será que o seu poema novo sob o sol vai falar da alegria? Já tomou notas, fez rascunhos? Duvido que você responda: 'Já escrevi tudo, não tenho mais nada a acrescentar'. Não existe no mundo nenhum poeta que possa dizer isso, muito menos um grande poeta como você."

O mundo - o que podemos pensar quando estamos apavorados com a sua amplidão e com a nossa própria impotência, ou quando estamos amargurados com a sua indiferença em relação ao sofrimento individual, das pessoas, dos animais e talvez até das plantas (pois por que estamos tão seguros de que as plantas não sentem dor?); o que podemos pensar sobre as suas vastidões penetradas pelos raios de estrelas rodeadas por planetas que apenas começamos a descobrir, planetas já mortos? Simplesmente não sabemos; o que podemos pensar sobre este teatro imensurável para o qual temos ingressos reservados, mas ingressos cujo prazo de validade é risivelmente curto, delimitado como está por duas datas arbitrárias; o que quer que pensemos sobre este mundo - ele é assombroso.
 
Mas "assombroso" é um epíteto que oculta uma armadilha lógica. Ficamos assombrados, afinal de contas, por coisas que divergem de alguma norma conhecida e universalmente aceita, de um truísmo ao qual nos habituamos. Mas a questão é que não existe esse mundo óbvio. Nosso assombro existe per se e não se baseia numa comparação com outra coisa.

Claro, na fala cotidiana, em que não paramos a todo instante para ponderar cada palavra, todos usamos expressões como "o mundo comum", "vida comum", "o desenrolar comum dos acontecimentos". Mas na língua da poesia, em que se pesam todas as palavras, nada é usual ou normal. Nem uma única pedra e nem uma única nuvem acima dela. Nem um único dia e nem uma única noite depois dele. E sobretudo nem uma única existência, a existência de nenhuma pessoa neste mundo.

Tudo indica que os poetas terão sempre uma tarefa muito árdua à espera." 

via facebook de juliana brina
 

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