sábado, 2 de novembro de 2013

um blues furioso, uma flor


É ter a mais pura razão o sentimento que alucina. Estar soldado em si mesmo. Houve uma vez que uma tia avó minha estava para falecer. Fui visitá-la na véspera da morte no hospital Albert Einstein. Ela estava absolutamente lá do outro lado, já. Toda entubada e roxa, a boca enormemente aberta, era só aparelhos que do lado piscavam. Quis vê-la não porque algum sentimento especial me ligasse a ela (embora gostasse dela, não era um elo vital ao ponto de querer estar ao seu lado na hora em que o vital morresse para continuar vivo em mim. E continuou) mas porque estava numa dessas ondas de “sou escritora”, “a morte nos é vedada”, “nunca vi ninguém morrer”. Jovem, tinha me aparecido um sonho de identificação profissional. É claro que quando entrei na sala da UTI senti uma esmagada. Ingenuidade foi pouco, talvez puerilidade ou falta de senso da experiência, dos ecos dela em nós. Encontrei: o céu da boca com um tubo enfiado por dentro e já roxo, o céu. De dentro vinha um ronco, era o próprio corredor do Hades que urgia. Deve ter sido terça-feira. Quarta-feira velório. Quinta feira enterro. Isto no começo de 2008.

Eu havia visto ou ouvido a morte, sei não sei, escancarada na boca da minha tia avó, o rugido do chamado. Deve ser o som da galáxia quando faz. Foi um tapa na orelha da menina que queria ver de perto a ausência, a que nos é vedada. Mas quando fui no sábado ao sítio não me sentia triste. Lembro-me que sentei nas escadinhas de cimento de fora, que dão pra mata. Mas não importa. Porque de olhos fechados sou tubo, eu virei um rio. Pensava na altura “estou sempre no fundo de mim mesma”, ou como diz Ana Cristina César “estou muito compenetrada no meu pânico/ cá de dentro/ tomando medidas preventivas”. Eu estava no subterrâneo de mim mesma, porque não me ensinaram a me revoltar. Isto é coisa que temos que aprender sozinhas, Ana. E para fora. Mas o subterrâneo era noite, brotava. Eu estava na corredeira do subterrâneo e quando abria os olhos a areia do chão estava desenhada em padrões astecas, ou maias. Regulares, retangulares, labirintos, círculos. De olhos fechados era tudo dourado. Eu chorava. E chorava. Enquanto do meu corpo subiam capins, agitados nos cílios. Meu ventre fertile: o choro é o que devolve à terra o sal da terra, o chão. E nos leva onde não podemos com palavra, gesto intencional ou saída, chegar. Comecei a cantar um poema, verso a verso, onde cada palavra chegava já na última. Mas sabia que não poderia me levantar pra escrever. Era preciso lembrar dele. Memória sempre me sobrou. Eu era um rio, e os rios só se levantam para se ausentarem em nuvens. O verso final foi retirado em todas as publicações e era “E o caminho é dourado”. Retirado por sugestão de um professor que também me deu a dica de desistir dos romances. Verso escrito porque no fim de tudo chegou Osíris, ou alguma divindade muito clara e com dois tubos no lugar de cornos na testa, um capricórnio ceifador do trigo, todo dourado, pranteou feito lançasse com a mão fechada que se abre, purpurina que se jogasse, em tudo o que eu tinha passado — sementes de dourado. Antes de tudo, foi isto:


Eu sou o rio dos mortos
dos meus parentes mortos
e os meus mortos são o mundo inteiro

eu sou o rio dos mortos
nasci da sede pelo dó das lágrimas
quando mortos todos os pensamentos

eu sou o rio dos mortos
me criei no pântano das palavras
dos restos tudo trago

eu sou o rio dos mortos
minha carne é das nuvens
se fujo só dou em mim

eu sou o rio dos mortos
e o meu choro o que devolve à terra
o chão do sal da terra o chão

eu sou o rio dos mortos
minha margem de árvores
dos astecas que me sangraram

eu sou o rio dos mortos
da terra não passo
e ninguém me ultrapassa sem desvão.

No dia seguinte resgatei o poema do meu esquecimento. Entorpecida, eu e minha máquina de escrever. Estava sobre a mesa um vaso com belas flores e elas alimentavam minha vontade de ter o poema fora do que eu tinha visto e só a dificuldade do ritmo da valentine poderia decalcar. Foi o segundo poema do "cantos de estima" que escrevi.

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