quinta-feira, 29 de agosto de 2013

alforria blues

aceitei que o mar é a única escrita que existe, antes disso
tinha firmado o corpo todo dentro dele até a cintura
sentia o bom sentir que é só sensação
o coração muito arraigado e estriado
o coração como uma batata crescendo na terra

tão contente que desconfiava
dos vaticínios, dos oráculos,
dos conselhos, dos pais,
das leis, dos sãos, afiava
todo o porvir em rios

de ervas - mananciais do ritmo.

então dei a ponta do meu dedo ao céu
e ele, em fluxo, retribuiu.
sopraram-me ao ouvido:
escreva nos bastidores do vivo.

e eu senti a rasante do pássaro que vem me ver.

domingo, 25 de agosto de 2013

Tal como num dia de festa

TAL COMO NUM DIA DE FESTA...

Tal como num dia de festa, pela manhã sai,
Para ver o campo, o lavrador, quando
Do calor da noite caíram refrescantes raios
Continuamente e já longe ainda ressoa o trovão,
De novo ao seu leito regressa o grande rio
E fresco viceja o solo
E da videira goteja a chuva
Que do céu trouxe alegria e resplandecentes
Ao sol silencioso se erguem as árvores do bosque:

Assim se erguem em propício tempo,
Aqueles que nenhum mestre por inteiro educa, mas aquela
Que é maravilhosa e imensa e de uma leveza envolvente,
A poderosa, a divinamente bela natureza.
Por isso quando ela parece dormir em algumas épocas do ano
No céu ou entre as plantas ou os povos,
O rosto dos poetas também se entristece,
Parecem estar sós, porém sempre estão cheios de pressentimentos.
Pois, pressentindo, ela própria também repousa.

E eis que o dia nasce! Esperei e vi-o aproximar-se,
E para o que vi, sagrada seja a minha palavra.
Pois a própria Natureza, mais antiga do que as eras
E superior aos deuses do ocidente e do oriente,
Acordou agora com o fragor das armas,
E descendo das alturas do Éter até aos abismos
Segundo a firme lei antiga e gerado do sagrado caos,
O entusiamo que tudo cria volta
A fazer-se sentir de modo novo.

E tal como uma chama se acendeu nos olhos do homem
Que projectou coisas sublimes, assim agora
Lavra de novo um fogo nas almas dos poetas
Deflagrado pelos sinais, pelos feitos do mundo.
E o que outrora aconteceu, quase oculto aos sentidos
Apenas agora é revelado,
E aquelas que sorrindo cultivaram o nosso campo,
Assumindo forma de servo, são agoras conhecidas,
As que em si contêm a plenitude da vida, as virtudes dos deuses.

E tu, perguntas por eles? Na canção sopra o teu espírito,
Quando ele brota do sol diurno e da cálida terra
E de borrascas no ar e de outras
Preparadas mais nas profundezas dos tempos
E mais repletas de sentido, e mais perceptíveis,
Se movem entre o Céu e a Terra e entre os povos.
Os pensamentos do espírito a todos comum encontram-se,
Em acalmia final, na alma do poeta,

De tal modo que ela, subitamente atingida, do Infinito
Há muito conhecida, estremece ao recordar-se,
E é-lhe dada a ventura de, inflamada pelo raio sagrado,
Dar à luz o fruto do amor, obra dos deuses e dos homens,
O canto, para que de ambos dê testemunho.
Assim caiu, como dizem os poetas, o raio sobre a casa de Semele,
Quando ela ostensivamente desejou ver o deus
E aquela que o divino feriu, deu à luz
O fruto da trovoada, o Baco sagrado.

Por isso agora bebem os filhos da Terra
Fogo celestial sem qualquer perigo.
Porém a nós compete-nos, ó poetas, permanecer
De cabeça descoberta enquanto passam as trovoadas de Deus,
Segurar nas próprias mãos o próprio raio vindo do Pai
E entregar ao povo, oculta no canto,
A dádiva divina.
Pois se formos apenas de coração puro
Como as crianças, se as nossas mãos forem inocentes,

O raio puro, vindo do Pai, não o queimará
E profundamente abalado, compartilhando a paixão
Do mais forte, o coração permanece mesmo assim firme
Durante as tempestades que do alto se abatem quando o deus se aproxima.
Mas ai de mim! quando de

Ai de mim!


E se logo disser,

Que me aproximei para contemplar os Celestiais,
Eles próprios me lançarão nas profundezas dos vivos,
Como falso sacerdote no escuro, para que eu
Aos que estiverem receptivos cante uma canção de aviso.
Nesse lugar





(Hölderlin, de "Hinos Tardios", em tradução de Maria Teresa Dias Furtado, publicada pela Assírio & Alvim).

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

coça, agrada

the only thing I need is my solitude, to
rembolsar mim mesma ao self, do self
fazer reinar o together
que é uma palavra
que de primeira
nunca sei escrever.

escrever é sentir o ritmo da respiração e intercalar uma coisa e outra em dança e duelo.
escrever é ser o ritmo do mato numa ventania, brisa e encosta.
escrever é ter a encosta entre os dedos, ter encostado o capim entre os dedos
saber como é que fere, como é que coça, agrada e esforça
as pernas uma subida de montanha: escrever.

segundo a wikipédia: "A tecla Enter (↵) é usada para indicar ao computador que o usuário terminou uma cadeia de caracteres."

das coisas mais bonitas que já inventaram
na era da internet, é o "enter"
é entrar que dá parágrafo e convida
troca-se uma letra de lugar e é "entre"
convenhamos, das coisas mais bonitas que existe
porque é o que está nos rodeando
é o limite onde não estou em nem está você
mas é o que nos liga e o que nos separa.

apertei "enter" outra vez
e mais outra
outra
outra
outra
outra.

brotando, brotando

acordei cansada, como se estivesse para me casar. imagina que há um besouro que anda pelas formas das coisas, tecendo ouro, deixando rastros de outras folhas que comeu. imagina agora que esse besouro sou eu.

como todo bom besouro incapaz de cozinhar feijão. e louco, louco de vontade, de feijão numa cidade não assim tão fácil de se conseguir: feijão. como el musguito en la piedra, comer a carne dos minerais e erguer-se, altiplano, úmido, reinante.

comer comer comer
e quando também for necessário
comer.

sou um besouro, já disse, e tenho um faraó no coração.
vamos dar uma festa, com o amor e a sua ciência, volver tão inocentes. 

domingo, 18 de agosto de 2013

a vida do vizinho

hoje soube que um vizinho do último andar, o que tem cinquenta anos e que andava com o telhado rachado, pediu pra vizinha do quarto ir cuidar da mãe dele que, velhinha de 100 anos, precisava ser vigiada, só pra em caso de lhe faltar alguma coisa.

o homem disse a vizinha que ela por favor não se importasse com as migalhas em cima da mesa, que eram pra alimentar o amiguinho que o vinha visitar vez em quando.

desconfiada de que seria um peludinho, a vizinha perguntou "mas que amigo?", e o rapaz disse que era um rato. a vizinha enojada recuou, e discreta afirmou que era ainda capaz de não ter tempo de acudir a mãe do rapaz, porque a perna, sabe lá, a perna direita não vai lá muito bem.

soube eu que, no íntimo, ela pensou que se o rato aparecesse ela de susto era capaz de gritar, e de susto era capaz de saltar, e cair da cadeira e partir a perna que, como se sabe, já não andava lá essas coisas.

enquanto contavam isso eu pensava só na solidão do rapaz, comprando pão no supermercado, eu já o tinha visto, comprando pão no supermercado, era pra dar ao rato. e eu não sabia.

vê lá as coisas que acontecem numa solidão.

do que restou interessa a voracidade da alegria

eu estive de olhos vendados pelas pálpebras, agora mesmo no sofá de domingo, e pensava na intermitência do que se lembra, e tentava perceber se as nuances do que foi vivido mais antigamente são mais tênues, fracas, apagadas do que a memória de ontem. não sei bem porque troquei o estacionamento da escola do qual eu sempre me lembrava pelo bem comum pátio onde quase nunca passava os recreios, não sei bem porque não gostava daquele lugar, nem sei bem se eu reparava que não gostava dele, e fiquei antepondo ele a lembrança do casal que ontem estava apaixonado na praia, eles tinham por volta de uns 50 anos, e deviam ter acabado de se conhecer, era muita fascinação, bonito. 
acho que em imagem todas as lembranças têm o mesmo viço, mas se pensarmos em associações do pensamento com aquelas imagens, as mais recentes tem tentáculos mais fortes, mas isso também depende do impacto, as memórias mais recentes, se forem excessivamente contundentes, elas são de um impacto puro e duro, único e não-narrável. nessas a distância do tempo opera de maneira mais associativa, os acontecimentos paradigmáticos, quando se tornam imagens da memória, tendem a ganhar relações com o passar do tempo.
mas quando isso se trata de um pensamento, ou de uma narrativa que não se viveu? 
eu usava isso, de ficar parada imaginando o transcorrer do tempo no tempo, de tanta fortificação pela imagem, eu imaginava por horas tudo aquilo que não estava acontecendo, era uma forma de me desistituir da experiência e do tempo, através do pensamento. depois tomei pudor por essas formas associativas, e acabei escrevendo poemas, quantos mais, todos os dias. gosto quando estou com tanto sabor no pensamento que a cada cotidiano vão aparecendo ruídos que se tornam versos. 
mas hoje penso que foi e é essa associação entre escrita e cotidiano, entre escrita e presentificação, combinada a um corpo muito mútuo de percepções, seja ele muito mútuo na convivência com os outros (a permeabilidade) ou, muito mais do que isso, o medo de imaginar o que não existe (embora passe tempo demais supondo ressentimentos, céus, como ando ressentida) é o que me dificulta escrever uma narrativa, umas narrativas em prosa. 
mas antes de ontem pensei uma coisa muito importante: que é preciso sentir com o corpo, a cena. que é preciso sentir a atmosfera que eu sentiria se estivesse presente. porque é isso que eu sei perceber, então é isso que eu preciso imaginar. a minha escrita nasce disso, desse passeio pela atmosfera.

sábado, 17 de agosto de 2013

hoje na praia tinha um sujeito que falava de enfartes, em todos os detalhes, de como as pequenas veias são as que entopem & etceteras, eu parava de ouvir, eu não queria aquilo, eu ouvia o mar, uma criança correndo, de repente eu ouvia "coração" no meio das palavras dele, reparava, desistia de reparar. coração não desista de reparar, tive vontade de dizer pra ele, que é verão, não esqueça de reparar, coração.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

maquete caseira

vou viver
até quando
eu não sei
que me importa
o que serei
quero é viver

amanhã
espero sempre um amanhã
e acredito que será
mais um prazer

a vida
é sempre uma curiosidade
que me desperta com a idade
o interesse do que está pra vir

a vida
envia sempre uma certeza
que nasce da minha riqueza
o meu prazer é descobrir
encontrar um lugar
de fugir ou repetir


terça-feira, 13 de agosto de 2013

calçada do combro

é porque eu sou muito permeável que os bolsos
se esvaziando vão se costurando na minha pele.
pelo mesmo motivo não posso com maus poetas
em pouco tempo me colocam a pensar em dinheiro
e noutras dívidas imaginárias que eles têm.

eu tenho pernas e vou ganhando pernas
conforme a inclinação da rua
vejo alguém que custa a subir
bolsas escuras, embaixo dos olhos
custa não ter pernas, essa minha idade
onde tenho bolsos e eu vou perdendo os bolsos.

sinto falta do que vai parar
de recomeçar um dia
essa mania
de pensar "um dia"
não terei fôlego não terei nada
só a minha cabeça, panela tampada
porque eu sou muito permeável e os bolsos
são deles 
porque eu sou muito permeável e os bolsos 

eu perco pernas e vou perdendo pernas
vejo alguém na rua que custa a subir
é duro é caro é certo   
custa tanto 
tanto medo
envelhecer, entretanto
nesse escuro
se entretece meu canto.

domingo, 11 de agosto de 2013

me estoy haciendo árbol

La poesía es un atentado celeste

Yo estoy ausente pero en el fondo de esta ausencia
Hay la espera de mí mismo
Y esta espera es otro modo de presencia
La espera de mi retorno
Yo estoy en otros objetos
Ando en viaje dando un poco de mi vida
A ciertos árboles y a ciertas piedras
Que me han esperado muchos años

Se cansaron de esperarme y se sentaron

Yo no estoy y estoy
Estoy ausente y estoy presente en estado de espera
Ellos querrían mi lenguaje para expressarlos
He aquí el equívoco el atroz equívoco

Angustioso lamentable
Me voy adentrando en estas plantas
Voy dejando mis ropas
Se me van cayendo las carnes
Y mi esqueleto se va revistiendo de cortezas

Me estoy haciendo árbol Cuántas veces me he ido convirtiendo en otras cosas...
Es doloroso y lleno de ternura

Podría dar un grito pero se espantaría la transubstanciación
Hay que guardar silencio Esperar en silencio





Vicente Huidobro, de "Últimos poemas".

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

UM

Nada mais diário
que o escuro e o claro

e o meu amor
cabeça de diamante
cegando o conflito 

o meu amor o meu amor o meu
tantas vezes você me abandonou
na minha imaginação.

Faz uns anos
eu amava homens de imaginação na minha imaginação até que aprendi a amar
a imaginação agora que, amo homens que me amam,
imaginam em mim que me abandonam.

Mas não sou eu, não
não sou eu quem abandona ninguém nem sou abandonada é a imaginação
uma herança. Não sei se herdei do tataravô que assassinou alguém
e quer que a escrita que o perdoe. Aquele que morreu picado por uma cobra dentro de um buraco e a última palavra que pensou foi DENTE e é por isso que hoje escrevo dente.
Não sei se herdei do meu avô que morreu no dia de hoje ainda nos anos '70
tenho o modo de olhar dele
provavelmente também as juntas do coração.

Um avô meu viveu com gastrite depois morreu, eu e minha irmã também temos.
Um avô meu ninguém sabe se abriu o gás ou se foi enfarte.
Minha vó graças a deus está viva e lúcida e às vezes se escandaliza com as manifestações.
Minha outra vó morreu meio metro menor do que era. Tinha ouvido absoluto
tivesse eu herdado fazia alguma coisa dessa voz, mas herdei o queixo, uns poros do nariz.


quarta-feira, 7 de agosto de 2013

subíamos sem parar uma escadaria em caracol e de vidros feitas as paredes, estávamos no brasil, mas isso parecia a universidade daqui (pensei agora) e repentinamente aparecia uma colega de escola (a roberta) e exclamava "que bom! vocês aqui!" e ele dizia que iríamos nos mudar pra lá, e o nariz dele começava a sangrar. 

depois estávamos no jardim da casa em que cresci e tinha cor de foto antiga e os gatos subiam e desciam pelos telhados, tomavam conta de tudo, eram muitos gatos, eram muito bonitos.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

o rubi espalhado



escrevi sobre o antónio variações na revista geni
a ilustração acima é da cecília
não PER CÃO

pelo cão  
aos astros,

notas de viagem (5)

"Estabelecer uma colônia permanente em Marte implica ir sem voltar. Isso parece impressionante, mas não se pode esquecer que na história de nosso planeta, as pessoas que partiram em viagens de exploração deixaram para trás suas famílias", tirado daqui

ou a Llansol dizendo que só voltaria para Portugal quando não significasse mais voltar, que fosse um ir.

que seja um ir.
voltar como quem viaja
também é não voltar,

voltei de Paris, alguém diz
de Marte também eu
não deixava de voltar,
embora tenham descoberto que lá havia oxigênio
isso foi milhões de anos atrás.

ou isso ou um dia outros contemporâneos
sempre vão me considerar
conservadora.

notas de viagem (4)

às vezes a pergunta "como conviver com o próximo?" se alterna num salto que pergunta "como conviver com o póstumo?". não sei, tanta gente que conheço vive entre ruínas. nem sei mais se acho que isso é ruim.

durante algum tempo quis abdicar do valor do tempo, de dizer que as coisas se passam de um jeito ou de outro. deixei-me triste até o silêncio. hoje desconfio que já era ela, mesmo que calada, a transformação. sempre ritmada e desafinada, tom de tudo, a transformação.

e a viagem vira um intervalo, ou um procedimento? vira o virar, que uma vez na cinemateca ouvi dizer que o césar monteiro não terminou a montagem de um filme, quando recebeu o dinheiro pra fazê-lo pegou tudo e foi passar uns dias em Roma. prova de que existem irresponsáveis louváveis. nota psicanalítica (ou a transformação as usual em curso): tratar a viagem como cesar monteiro tratava a vida, à galope.

no fundo eu não tenho estômago pra nada. é literal, basta 1/4 da bactéria inteira que atacaria uma pessoa normal, basta 1/4 dela pra que eu esteja deitando as tripas pra fora. e jesus, finalmente aprendi de que lado está o baço. vou ser hipocondríaca quando póstuma: aquela que só sabia de emplastos, astrologias, poemários rotos. aliás, uma coisa que a europa me ensinou foi a amar o roto.

sem ofensas, pessoal.
tudo no mundo continua um interior sem tamanho.
 

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