quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

o que eu quero de 2015

escrever.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

rojões & heranças

acordei com um sicrano soltando rojões pelo bairro & me lembrei de que, algumas vezes, quando criança no fim da noite de natal eu chorava. chorava de frustração. sentia um aperto crescente, uma expectativa que não se completava nem com os melhores presentes do mundo. ainda deitada, desejei que o sicrano explodidor de foguetes terminasse a noite como essa criança que fui.

então me lembrei de que este ano eu e meu pai estávamos no trânsito dos arredores da rodovia Raposo Tavares, indo ao cartório eleitoral da cidade de Cotia, quando eu fiz pra ele uma pergunta fulminante, pra ver se ele parava de reclamar dos estúpidos que não sabem pegar a rotatória da maneira certa, ou que correm mais do que Hermes pisando em fogo, ou que deixam buracos na estrada, ou que...

não sou batizada em nenhuma religião, não tenho crenças e mesmo a fé às vezes me falta mais do que eu gostaria. cresci ouvindo meu pai dizer que meu avô caçador-curandeiro-bon-vivant foi até a escola do meu pai brigar com um professor. o motivo? por conta do pecado: meu pai era criança e o professor tinha lhe dito que ele não poderia fazer alguma coisa porque era pecado. meu pai chegou em casa e perguntou pro meu avô: "pai, o que é pecado?" e o meu avô, iradíssimo, respondeu: "pecado é comer palha!". e foi até a escola e disse para o professor que se ele metesse novamente aquelas ideias na cabeça do meu pai ele faria o próprio professor comer palha.

quando estudei nas Letras da USP ouvia uns boatos de que meu pai sabe o que sabe sobre o século XVII porque teria sido seminarista! e lembro dos risos que dávamos disso falando dessas histórias do vovô. cresci, portanto, ouvindo meu pai dizer que meu avô não gostava de nada que passasse perto do cristianismo e tomei isso com uma crença fulcral na herança da minha família paterna.

então estávamos em Cotia, tentando achar uma via para subir para o centro, meu pai dirigindo e sendo fechado por outros carros, aquela aridez de beira de estrada, ele mesmo disse "São Paulo é toda linda, toda linda nessa perspectiva Waste Land" e quando cometeu impropérios sobre os transeuntes, eu fiz o que às vezes faço, uma pergunta lançada do nada ao sábio: "papai, o que você acha de Jesus Cristo?".

ele respirou fundo, começou com um "bem" e me respondeu "ele era um cara legal, tinha uma mensagem excelente, que ninguém ouviu direito. se tivessem ouvido, toda a história seria outra. por exemplo, 'amai-vos uns aos outros como a si mesmos', seria maravilhoso, não seria?... mas na prática! é impraticável... olha o que esse imbecil está fazendo!" e apontou para um motoqueiro avançando em cima da faixa de pedestres. respondi: "nossa, nunca imaginei isso, achava que você não simpatizava com a figura". e ele "não é uma questão de simpatia, é uma questão de vida: ele dizia: 'atire a primeira pedra quem nunca pecou', isso é uma liberdade, ficar cagando regra na vida dos outros é uma mensagem não-cristã, os caras não entendem nada... não entendem nada nem de liberdade, nem de perdão".

lembrando de tudo isso, me levantei da cama, não sem antes ouvir mais um rojão do vizinho a quem eu deveria amar como a mim mesma, como ao meu sono, o sonho de todos, o pai. o meu, aliás, vai passar os próximos dias dizendo

NATAL É FATAL

é assim, viva e deixe viver.

domingo, 21 de dezembro de 2014

reza

entre os finais de ano: o verão.
ressuscitar como o menino que vão comemorar
esquecidos do menino que foi.
o poeta alberto caeiro tinha uma flor entre os dentes e disse algumas coisas a esse respeito.
numa luz eu (também) vi a virgem: mas tive medo.
sua luz era intensíssima, brilhante navegava
o azul e o céu. o azul e o céu são de quem?
do condor, do avião, do contorno dos teus olhos.
ouvi um homem dizer na rua na frente de casa mesmo atravessando no nosso portão
o homem disse ao telefone: "é a época do ano, má, é pesado".
desconfio que "má" do outro lado era marília
marília que não conheço
que o apelidava de olhos fechados: poeta.
era quase natal e dirceu,
com seu cotovelo levantado a segurar,
o celular no ouvido dirceu lembrava
com a ajuda desse gesto de cotovelo que ajuda a lembrar
que todo mundo sofre
que a família sempre tem excessiva memória
que o natal nos lembra do que não temos
que estão todos ausentes mesmo presentes
que estão todos presentes mesmo os ausentes
faz senhor deste repetir uma oração
que estão ausentes todos os presentes
que é porque ficam tão presentes no presente
no presente dos seus passados
(em comprar presentes nem se fale da
falta/ do excesso/ da escassez / do retrocesso)
que é porque todos os seus antepassados
viajam para ocupar os corpos vivos
(é este o primordial motivo para que no hemisfério norte se comece o inverno
e no sul o verão, assim, ao mesmo tempo e cruzado, pois nesta noite os mortos abrem uma fenda no vácuo das galáxias e a terra desloca-se)
e é por isso que as pessoas bebem tanto,
comem tanto, brigam tanto
no dia da natal.
é tudo corpo velho em gesto antigo rebocado no futuro deste agora:
dá um tranco: os antepassados precisam se alimentar.
"não é nada a ver não, má",
disse o dirceu
que vai dar de presente pra marília
nenhuma maldade
vai dar um danado
amor. pra durar no dia mais longo do ano
ouvindo aquele sempre do bem, o bom, o baden.


terça-feira, 2 de dezembro de 2014

7

não sei, mas acho que foi quando eu tinha 7 anos, que me levaram num médico porque eu não conseguia dormir e sentia uma imensa pontada no coração. de vez em quando. o médico me ensinou a tomar banho antes de dormir, e leite quente. e descobriram que meu coração estava bem, mas que eu (carnívora que sempre fui) deveria comer mais proteína.

eu tinha 7 anos também quando entrei na 1a série e ainda não sabia escrever nem ler em letra cursiva. todos sabiam. a lousa parecia tecida de hieróglifos, é assim que hoje vejo outras dimensões. não sei se com o tempo saberei ler tudo o que vejo, mas como não sei entender tudo que leio, acho que não, que o desconhecido vai vencendo em toda parte do mundo. amém.

eu tinha 7 anos quando saí pela primeira vez do Brasil, fomos até Portugal e Espanha. ainda não existia a comunidade européia (q dentro em pouco talvez também volte à ruína) e quando entramos no metro, na primeira carruagem descemos no Rossio, cheios de malas, e minha mãe ainda dentro do vagão descobriu q tínhamos sido assaltados. lembro do trem atravessando fronteiras. contam que passamos alguma fome, já que o dinheiro tinha sido quase todo levado ao chegarmos para a viagem. meus ouvidos doíam muito. atravessamos a fronteira para a Espanha de madrugada, não carimbaram nossos passaportes. ganhei um coelho de pelúcia branco numa grande praça em Madrid, cuja etiqueta nomeava a fábrica: Alegria. meus pais brigavam enquanto me deram o coelho. essa talvez seja uma das imagens mais fortes da minha memória.

meus ouvidos doíam quando eu tinha 7 anos. fiquei surda durante uns dias. doíam muito. 

eu tinha um moleton roxinho do fim dos anos 80 que eu achava uma gracinha. não deixava que ninguém me penteasse, a não ser minha irmã, que eu via poucas vezes por mês. meu irmão dizia que meu cabelo parecia a orelha da setter que tínhamos, a Bela.

acho que ganhei a Bela quando fiz 7 anos. dei o nome para ela, que era frágil e foi pegada de noite numa casa na cidade de SP.

eu não cresci na cidade de SP.
e acho que, finalmente, aprendo a gostar dela.

domingo, 23 de novembro de 2014

sábado, 22 de novembro de 2014


Seu deu a fissura:se atrelou contra mim
através de uma ranhura.
Criou relevo:
decalquei o silêncio.
Que profundidade!

*

Depois da notícia da miss motosserra
ser ministra da agricultura
sonhei que a água acabou tanto
que fui morar com minha amiga
de tempos de juventude
dentro de uma caverna.
Ficava numa encosta de vale
rochoso de argila seca cor de rosa
e tinha o teto azul de cristal.
Era uma ironia melancólica
que o teto da nossa casa
parecesse água, sendo rocha.
E eu ficava olhando o teto
sempre embasbacada com a beleza
que nostalgia!

Tínhamos uma horta
e uma lata. Toda gota de água
que, eventualmente, caía na lata
era metade nossa
metade da horta
que plantávamos humildemente
dividindo as espécies vegetais
com restinhos de madeira vermelha.
E assim levamos a vida
em contar as gotas
fazer um pouco de fogo
e ver o teto brilhar
feito o fundo de uma piscina.


*

Ouvi muitas vezes na minha família que foi Brasília que matou o meu avô. Cresço considerando que o poder mata Brasília que mata as pessoas e assim, como um dominó, o país continua. 
sonhei que a seca havia chegado de maneira tão definitiva que houve um deserto em tudo. então eu morava numa caverna que tinha o teto azul, de cristais azuis. era bonito quando era noite e acendíamos o fogo. tentávamos cultivar uma horta.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

tem um recôndito do meu olho que está ardendo
ganas de viagens sempre.
escondo mais o jogo do que aquele que está vendo
é uma forma de viajar por dentro.
visito uma cidade só de estar nela & há gente q não sabe ler.
não sei imaginar o q seja isso, os símbolos não param de ganir.
estou com as energias baixas e não consigo desligar.
atravesso uma uma uma uma uma estou sempre sendo uma.
não me deram: a experiência de ser duas
nem a experiência de ser homem (ainda bem)
nem o movimento de ser nuvem (pena).
será q a nuvem tem um ser?
gostaria de q incentivassem o meu ser tecnológico a esse tipo de perguntas.
mas acho q vive bem assim quem não precisa de incentivo & ou amacia a carne do seu peixe.
meu peixe é um agulhão, um peixe-espada, rasgando a imensidão.
meu peixe não come anzol do tédio. meu peixe é meu peixinho querido.
agita ondas de um lado & de outro não engole o anzol.
flana pelo azul agitadinho, descobre fascínios
come só com a rebarba das barbatanas de cada namorado
q não tive nem me quis afinal só me interessa o q não é meu
dizia titio oswald. acho q eu devia ter nascido (homem?) andrade
e no começo do século passado. aí sim, ia rolar um lance
mais forte do q aquela batalha na mesa de ping-pong
12x25, você fazia sempre questão de narrar primeiro o valor mais baixo
coisa q sua capacidade de cálculo nunca notou.
é do meu mercúrio, hoje eu sei.
aliás há cada órbita no porvir! menina! é um fenômeno fundamental.
o q? o q o q? ah! o porvir é q é um fenômeno fundamental.
além do desfazamento do rigor q é uma elegância!
vão tentar te enganar com discursos: vai ser assim, vão te dizer
agora qualquer coisa ou finalmente começamos ou
a humanidade está começando a entender
ou
no princípio a humanidade sabia entender
ou
a humanidade não sabe entender ou
como era boa a minha humanidade ah

você só pode estar de brincadeira
é melhor dar banana pra humanidade
sair desse blablablablabla randômico
q já cansou minhas linearidades.
ah! minhas linearidades cansadas de tanto movimento
ah! meu inconsciente magnético e gasto de tanta informação
ah! meu unicórnio prateado vestido de david bowie
eu & você
vamos passear
com cornetas & cores.
ah q sono dessa chuva oblíqua desse pensamento.
GRITA GRITA pra nos salvar escrevi em 2009.
não vai resolver
a humanidade não vai ter tempo pra chegar.
os animais vão nos salvar.
vão trazer a água e as florestas.
vem sempre juntas uma com a outra.
estamos aqui, os sadios, fazendo uns ritos por um tempo de florestas.

sábado, 15 de novembro de 2014

ontem

5h da manhã subindo a Rebouças num taxi
numa rara conversa com o taxista

que me contou ser obreiro da palavra
ele falava de religião, eu de poesia
ele além de taxista, trabalhando contra a mentira, imaginem
dentro da igreja combatendo charlatões em busca do poder pelo poder & do dinheiro pelo poder & esses ciclos-vícios todos.
me falou da Bíblia sem querer me ensinar nada; me contou da irmã que se separou de um milionário austríaco e escolheu ficar sem nenhum
centavo do marido; falou do absurdo da falta de água em
sp ser programático pra gerar mais obras e mais desvios; falou q ficou tristíssimo na época das eleições, q abria o facebook e sentia náuseas.

a acelerada conversa cheia das pausas da madrugada
terminou com ele me dizendo
"essa história que você contou de que, a não ser q seja pra ferir, ao vermos uma parede é melhor descascar do que dar um murro, me lembrou aquela do beija-flor que está apagando um incêndio. daí chega um elefante meio cínico e diz assim pro beija-flor:
-e aí? acha mesmo que vai conseguir?!
e o beija-flor:
- não sei, mas pelo menos estou fazendo a minha parte".

abri o portão de casa acreditando no beija-flor.

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

meu gato estava equilibrado no parapeito da janela daqui de casa, que vista na perspectiva desta madrugada tornou-se um oitavo andar, e então ele SALTOU, abriu as asas como um paraquedas de morcego, foi caindo entre flanando e se desgraçando, chegou lá embaixo e se espatifou. vi da lonjura que ele saiu andando e fui recuperá-lo. no caminho me aconteceram duas vezes outras coisas, até que diretamente o tive nos braços. as patinhas dele estavam mais estateladas do que nunca (ele tem mania de alongar o entre dedos até o estado de tensão absoluta das mãos) e, deitado no meu colo, quando ele parecia que iria ronronar, meu gato, o Capim, ele CANTOU. a queda (ou o vôo?) ensina a cantar.

quarta-feira, 12 de novembro de 2014

espaço & tempo

vários tratam as palavras como admiráveis
indomáveis admiro também
às vezes até em letreiros
que me fascinam e movimentam
apiacás, sacomã, pompéia
praça ramos, socorro, lapa
tantas vezes esperei por ver vocês
oxalá apareçam sempre
e rápido e brilhantes de letras
inescapáveis.

quarta-feira, 5 de novembro de 2014


autografia I
Sou um homem
um poeta
uma máquina de passar vidro colorido
um copo uma pedra
uma pedra configurada
um avião que sobe levando-te nos seus braços
que atravessam agora o último glaciar da terra

O meu nome está farto de ser escrito na lista dos tiranos: condenado à morte!
os dias e as noites deste século têm gritado tanto no meu peito que
           existe nele uma árvore miraculada
tenho um pé que já deu a volta ao mundo
e a família na rua
um é loiro
outro moreno
e nunca se encontrarão
conheço a tua voz como os meus dedos
(antes de conhecer-te já eu te ia beijar a tua casa)
tenho um sol sobre a pleura
e toda a água do mar à minha espera
quando amo imito o movimento das marés
e os assassínios mais vulgares do ano
sou, por fora de mim, a minha gabardina
e eu o pico do Everest
posso ser visto à noite na companhia de gente altamente suspeita
e nunca de dia a teus pés florindo a tua boca
porque tu és o dia porque tu és
a terra onde eu há milhares de anos vivo a parábola
do rei morto, do vento e da primavera
Quanto ao de toda a gente — tenho visto qualquer coisa
Viagens a Paris — já se arranjaram algumas.
Enlaces e divórcios de ocasião — não foram poucos.
Conversas com meteoros internacionais — também, já por cá passaram.
Eu sou, no sentido mais enérgico da palavra
uma carruagem de propulsão por hálito
os amigos que tive as mulheres que assombrei as ruas por onde
         passei uma só vez
tudo isso vive em mim para uma história
de sentido ainda oculto
magnífica           irreal
como uma povoação abandonada aos lobos
lapidar e seca
como uma linha férrea ultrajada pelo tempo
é por isso que eu trago um certo peso extinto
nas costas
a servir de combustível
e é por isso que eu acho que as paisagens ainda hão-de vir a ser
               escrupulosamente electrocutadas vivas
para não termos de atirá-las semi-mortas à linha

E para dizer-te tudo
dir-te-ei que aos meus vinte e cinco anos de existência solar estou
em franca ascenção para ti O Magnífico
na cama no espaço duma pedra em Lisboa-Os-Sustos
e que o homem-expedição de que não há notícias nos jornais nem lágrimas à porta das famílias
sou eu meu bem sou eu partido de manhã encontrado perdido entre
        lagos de incêndio e o teu retrato grande!

- -
Mário Cesariny

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Canto do guerreiro (primeira versão)

Sou o guerreiro. Ninguém me iguala.
Não foi em vão que me vesti de plumas amarelas:
graças a mim nasceu o sol.
Graças às plumas amarelas, o homem da região das nuvens teve um presságio funesto,
o homem da região do frio perdeu um pé.
Distribuem-se entre as gentes as plumas que o guerreiro colou ao corpo.
O nome do meu deus significa "aquele que vence as gentes".
O meu deus tornou-se num deus terrível.
O meu deus faz turbilhonar a poeira,
turbilhonar a poeira.
Oh, junta-te a mim,
junta-te a mim com as tuas plumas amarelas,
entre a poeira.

- -

poema asteca
de "poemas ameríndios"
mudado para o português por Herberto Helder

domingo, 19 de outubro de 2014

incorporando pessoa - parte 1

estudo astrologia faz uns 15 anos. só queria dizer que acabei de me confrontar com o fato de que o drummond e o belchior tem mapas astrais parecidos. acho que vou chamar o fernando pessoa pra conversar sobre esse assunto.
como seria a i no vo ca ção (a invocação cheia de novo, sem nostalgia) do poeta? se o próprio fernando se sentasse na cadeira ao meu lado, como se ela não fosse a sintética cadeira de madeira com desenho de violão cantando canção dos anos '60,  mas sim uma namoradeira de pedra de algum segundo andar da rua de são mamede e se de algum jeito o próprio fernando falasse comigo: olá, Júlia.  Fernando assinaria "com os melhores cumprimentos"? ou, faria assim lindo:
"Seu,
Pessoa."
nada disso, pois ele já está sentado ao meu lado. vejo uma cadeira vazia, não escuto a sua voz, nem ele está aqui mesmo de verdade... penso que estou frustrada. vou ter que chamá-lo novamente:
Seu Pessoa, 
por favor, venha até mim pra conversarmos sobre o mapa astral do Belchior e do Drummond. você não os conhece, mas eles o conheceram. diria mais: diria (por favor me dê o seu coração que pensa tanta quanto sente): eles passaram a vida a te amar. vamos ver os mapas deles juntos?
aguardo com carinho a sua mensagem. 
beijo!
júlia.

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

paz




um beijo pro don octavio.
espero que ele me retribua. 

terça-feira, 14 de outubro de 2014

como calha

viver no lixo ou na cama
casar na cama ou na capela
putas vinho e cinderela
caça ao fim-de-semana
ganhar o pão de gravata
a chafurdar-me na lama
ficar para sempre com a manuela
ou não se ama como calha
por que é que não é tudo como calha
nem mesmo no acaso a culpa falha
bem que podia ser tudo como calha.
matar a velha das finanças
ou ser verde e amoroso no andanças
a encher as freaks todas de esperanças
e lembranças uma vida de caganças
juntar-me a um homem lindo
ou fingir que vou dormindo onde calha
por que é que não é tudo como calha
nem mesmo no acaso a culpa falha
bem que podia ser tudo como calha.
fica sempre tanta gente para trás
ou é para a frente nem me lembro
agora tanto faz
os ofícios as rotinas que escaparam rapaz
as mentiras as meninas que deixaste em paz
as leituras as viagens as carreiras
que deixaste em paz
já perdeste um companheiro
e 'tás inteiro sem os sonhos que deixaste em paz
a velha ganância a namorada de infância a casa no bairro o carro
e tudo o que não volta atrás
do karma que deixaste em paz
deixaste em paz


quinta-feira, 9 de outubro de 2014

há um concerto tão lindo da mercedes sosa na suíça, em que ela cita o cesare pavese dizendo que os poetas são profetas. ontem de madrugada tentaram me enganar num daqueles telefonemas em que se fingem de algum conhecido teu dizendo que foi sequestrado (há tanta má farsa na realidade!), e eu depois de um pesadelo, e de dormir muito bem, passei o dia cantarolando pelas ruas daqui (e dali também) "quero ter olhos pra ver / a maldade desaparecer", e lembrando da mercedes fui esperando o ônibus dizendo o que o pavese diz entre os lábios (onde tantos versos perdi!), pensei que se os poetas são profetas, os sambistas são, então, a profecia.

quarta-feira, 8 de outubro de 2014


segunda-feira, 6 de outubro de 2014

oficina de escritas


sábado, 4 de outubro de 2014

ontem à noite, pela primeira vez, li o poema do Leonardo Fróes que segue abaixo. é maravilhoso demais ter trinta anos e acontecer de novo de ser a primeira vez que leio algo que parece que sempre foi o sentido de tudo, de tudo, no caso, que penso sobre o poema:

O poema

Com esse modo agreste
de usar o vocabulário,
tentando tirar o mofo
do seu emprego diário,
tentando dar às palavras
um valor não-literário,
tentando extrair vida
de um velho dicionário,
aí vai o poema,
e vai sem destinatário,
assim como surgiu,
rangente, seco, dentário
capaz de ferir a pele
por baixo do vestuário,
capaz de fundir num todo
os sentimentos contrários.

Excesso de amor perdido
no território solitário
de um aprendiz comovido,
resto de gritos e urros
num cárcere voluntário
onde me sinto mais livre,
o poema, sendo vário,
é sempre uma coisa minha
de fundo comunitário,
é sempre o desenho breve
de um gesto visionário,
uma esperança constante
de, sempre, ser solidário.

Símbolo tenso e aéreo
de um ébrio noticiário,
rumo incerto construído
com materiais precários,
o poema é sobra e soma
de impasses humanitários,
é dúvida e febre, cerco,
memória de um ser primário,
é o lance mais gratuito
de um jogo desnecessário
que eu disputo com as trevas
por ímpeto hereditário.

Meu tédio, meu desalento,
meu triste dever diário,
as forças de além-do-tempo
sujeitas ao calendário,
minha sede, meu orgulho,
meu desgosto sedentário,
minha mão sempre apontando
para um mundo igualitário,
meus monstros gesticulando
no fundo de um relicário,
meus porres e meus pavores,
meus nervos incendiários,
vai tudo contido nele
em busca de itinerário.

E se acaso esse poema
no seu ritmo arbitrário
toma fôlego e se entranha
nos meandros planetários,
se chega, tal como a brisa
ou som de um campanário,
a pungir dentro do peito
de onde é originário,
se reproduz, como pode,
a forma de um estuário
por onde meus sonhos fluem,
eu, seu modesto operário
—que nunca de um talento
fui o feliz proprietário,
cuja ambição foi só
ser um fiel escriturário
de tudo o que vai passando
no mundo do imaginário—
eu me dou satisfeito
e, fato extraordinário,
me suplanto, me extasio,
me dissolvo libertário
e sou cada vez mais eu
sendo vosso — e ainda mais vário.


- -
do "Língua Franca", de Leonardo Fróes, livro publicado quando o poeta tinha 27 anos.

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

minha idéia de mim é como a história

PASSAMANARAGEM

           O passado — que não existe — é talvez
minha única invenção gloriosa. Por ele eu crio algumas linhas
            que me iludem na dissolução
            da hora presente sem finalidade.
Por não lembrar de mais nada, exatamente como foi,
            eu falsifico uma pessoa
            que tende a ser melhor do que eu sou
            e a agir brilhantemente
            em qualquer aperto.
Minha idéia de mim é como a história
            de um país que se idolatra em seus mortos
            enforcados ilustres.
Afirmo ter estado nas paisagens do armário
            que sonhei ou são
mas não encontro jamais uma das caras possíveis
            por essa peregrinação da cabeça
            em minhas sendas.
Só a hora presente é o meu país sem progresso
            e sem grandeza.
            Só as aves entendem
            o que estou olhando ao longe
            sem pensar mas sentindo
            minha insignificância perfeita.


- - -
Leonardo Fróes,  em Sibilitz. 

o que conheço

"Não conheço influências literárias, conheço influências humanas",
escreveu a Marina Tsvietaieva, que fez 120 anos faz poucos dias.


sábado, 27 de setembro de 2014

britannica

deve fazer uma semana, um pouco menos, que o Gustavo me mostrou num site português uma enciclopédia inglesa à venda, inteira, por 15 euros "negociáveis".
fiquei um pouco deprimida com isso, ou despencada como numa forca do nosso tempo, desviando do que já passou e pensando quanto vale o google. será que um dia o google também vai
despencar de preço?
mas ninguém vende o google de porta em porta para quem quiser comprar
decorar a estante
complementar os estudos das crianças. 

estava pensando nessas coisas quando perguntei
"mas é a Britannica?"
"não, não é. é a _____"
"ah (...)"

e fiquei entre mim mesma
mais doce do que desanimada de lembrar
que no escritório do meu pai / grande de muitas paredes com estantes, onde às vezes, por medo de ficar sozinha, eu dormia no sofá com a manta xadrez vermelha e verde dos cobertores parahyba, que não era suficiente pro frio úmido da madrugada. mas eu lá ficava com a ponta do nariz meio gelada.

era bem em cima do sofá que nesse escritório do meu pai tinha a Britannica
muitos volumes com a capa perolada
e eu tinha dificuldade em segurar o peso inteiro de um daqueles volumes
que embora contivessem o mundo inteiro, eu lá me interessava?
pegava sempre o volume com a letra D
depois de um tempo já sabia até onde abrir pra encontrar

DOG

e passava inumerável tempo vendo todas as raças de cães com fotos coloridas. eram raras as fotos coloridas em todos os volumes e eu percebia assim a seriedade daqueles sujeitos: o que importa, os cães, estão coloridos, coloridíssimos. era uma maravilha. uma maravilha a seriedade que eu averiguava naqueles livros.
até hoje, que numa busca por imagens no google resolvo o que eu quero em cinquenta segundos, até hoje acho que isso fala mais sobre a minha pessoa do que muita coisa: tipo isso, confiar nuns livros gigantes, só porque em poucas páginas eles nos mostram tudo aquilo que vale no (nosso mundo). e, por hoje, é suficiente. 

 #
semana passada eu também soube que meu pai tirou finalmente as caixas do galpão onde viviam a maior parte dos livros dele, desde que saímos da casa em que cresci, já que essa foi brutalmente assaltada uma década atrás. depois de anos, parece que a primeira coisa que ele procurava ao abrir as caixas, já na casa nova, foi: "onde está a Britannica?". não sossegou até encontrar as caixas onde ela estava. e isso sendo seguido pela nova cadela que demos pra eles, que veio da Bahia e fará cinco meses dia desses. 


açúcar

fazia coisa de cinquenta dias que eu não comia açúcar. sou uma máquina à combustíveis e que excelência vinha sendo esta capacidade de dizer não a uma série de substâncias que alteram as velocidades e as consciências. dizem que é questão das células se acostumarem, que é preciso dar o tempo delas pra que elas se desliguem de certos hábitos. qual o tempo de uma célula é a mesma pergunta que: qual é o tempo do seu ser? 
beija-flor ligue os beiços nos meus
estamos falando de amor:
sugar cane fields forever.
hoje comi açúcar num doce de padaria, senti-me inicialmente como se tivesse levado um leve empurrão que me fez sentar. sentada senti muita alegria e constrição no meu peito, que constrição levou o corpo todo a se aquecer, as extremidades muito irrigadas de júbilo. o açúcar é a droga que nos dão na infância. 
imagine como era antes do açúcar? por onde se inebriavam os meninos? 
será que o nascimento da infância tem suas redondezas na descoberta e espalhamento do açúcar?
então comi mais algo doce e comecei a me sentir numa música dos jackson 5, assim de pequenos movimentos cintilando pelo corpo todo, a alegria de qualquer coisa sendo qualquer coisa se fazendo. a velocidade do arbitrário. e cabrum! meus músculos se fechando. como explicar o fechamento? pequenas placas como tectônico é o solo, omoplatas se juntando, e um grande peso no corpo aumentando.
não é à toa que o açúcar fecha a intuição. pequenos cristais de insensibilidade coagulam.
e que é dos maiores depressores que conheço. 
um pouco te põe pra cima, um pouco mais, ou mais repetidamente durante dias: AY QUE DESÂNIMO.
dizem que isto tem a ver com o tamanho da molécula que é preciso quebrar: são gigantescas as moléculas de açúcar e a produção de enzimas do corpo não dá conta de absorver tudo aquilo. por isso engorda tão facilmente, também.
curiosa capacidade do corpo não poder assimilar aquilo maior & assim conter.

1

ando desprositadamente longe das sílabas que se reúnem num simples toque de dedos
ou como dois e dois logo, com mais um, formam os dedos de uma mão
vou diagonalmente zanzando por tudo que encontro e que não tenha
o núcleo duro de uma separação — um desvio avistado — a cólera
coisas que não, hoje em dia não me interessam: não.

é curiosa a delicadeza que pode ter um não. ou a distribuição criteriosa de um não
não, não gosto; não, não quero; não, eu evito; não, agora não.

e retumbante a aproximação do diverso: o sim. B me disse hoje que tem mais espaço
mais espaço pro outro ser, receber esse inteirar-se que é ter espaço pro outro.
também tenho sentido isso nos diálogos aproximados. e tem a ver com corpo.
portanto também tem a ver com aquele verso de gilberto gil:
minha aura clara só quem é clarividente, pode pode ver.

também é bom estar na sombra, tantas quis os holofotes
tantas só o beijo do bem, mas que vigilante descoberta
essa da proximidade do que cresce melhor: à sombra.

certas plantas de sombra nunca reverdescem
outras não, nasceram lianas e descobertas
até mesmo essa desimportância de estar ou não
de estar ou não fazendo sentido.
escrevendo simplesmente.

como ensina GMT: pra máquina ligar.

terça-feira, 23 de setembro de 2014

atualmente não navego mula nem cometa
e a substância mais transcendente que tenho usado
são os ônibus da cidade de são paulo.

desde que foi ao veterinário ontem a minha gata grita
pela janela grita pela porta pula no trinco e grita
faz tudo que pode pra sair. talvez isso seja a primavera!

sábado, 20 de setembro de 2014

nido

"A este momento do dia dei o nome de
ensaio do primeiro amor"

Marta Navarro

Ponho-me a pensar o que seria
da palavra ninho
se falássemos outra língua
—falsearíamos outras hipóteses
na lista do supermercado —
e não tivéssemos casa
para nos abrigar deste vento que agora venta
como se fosse chover ou como se trouxesse a chuva.
Nestes dias em que esperamos que chova
mas quando amanhece chovendo
nos esquecemos do quanto esperávamos
—vazio de quanto vivíamos —
há chuva e nos pomos melancólicos
— nos pomos melancólicos de deus
não há estudo nem pormenores
aglutina-se por dentro a saliva
vigiam por fora estátuas / correm cavalos —
a meditar num saxofone
gravíssimo
como um compositor
que, tocado pela súbita neblina,
com os ombros um pouco tensos
—é tanta coisa a sentir-se viva
pelo mundo — ergue! os braços
alcança os galhos e salva da ventania:
um ninho. Antes que se molhe
antes que nunca mais chova:
pega pela mão a fibra  
do abrigo tece o som
tece o meu e o teu.
O compositor quem é?
Nos abrigamos onde não há perguntas. 
Sabemos o que é um ninho
quando ouvimos e dizemos: ninho.
Somos capazes de chorar.

Lótus


sexta-feira, 19 de setembro de 2014

o mistério de frente?

As letras destas canções são quase totalmente incompreensíveis para os Yaminahua que não são xamãs. Townsley escreve: "Não há praticamente nada nestas canções que seja designado pelo seu próprio nome. Utilizam-se as perífrases metafóricas mais obscuras. Por exemplo, a noite torna-se 'antas velozes', a floresta 'amendoins cultivados', os peixes 'pecaris', os jaguares 'cestos', as anacondas 'redes para dormir' e assim por diante".

(...)

Por que motivo os xamãs yaminahua utilizam esta maneira de se exprimir? Segundo um deles: "Com os meus koshuiti eu quero ver; ao cantar examino cuidadosamente as coisas; a linguagem dupla e entrelaçada aproxima-se delas, mas não demasiado; com as palavras normais esbarrava nelas, com as palavras duplas e entrelaçadas ando à sua volta e consigo vê-las claramente".

- -

do livro do Jeremy Narby
"A serpente cósmica - o ADN e a origem do saber".

domingo, 31 de agosto de 2014

escrevo

tenho como mestres um professor e um xamã
e embora ambos se confundam um no outro
(assim como o meu pai é o meu avô
e ambos são as fusões do magma celeste)
eles me querem a escrever: então escrevo.
e como minha melhor amiga vai ler: escrevo.
e como eu mesma encontro o que dizer: escrevo:

há leveza nos ombros e limpeza nos olhos.

já se percebeu que entre planta e planeta
há só um "e" escrito a mais
o que isto quer dizer?
que criar raízes é o mesmo que fazer órbitas.
e o ritmo acontece nesse entre.

se eu soubesse desenhar o resto da água
que se abanca em gelo nos polos 
ou a cobertura de musgo que vive na sombra
e com o vento não se arranca embora
movimente sutilmente quando chove
ah! sorriria. como não sei, sorrio também
pois há um meio: dar o meu rosto: dizer.  

e ofereço meu próprio corpo a ser:
arbusto e água corrente, vento já não sei
o que engloba o que me olha.
mas, pois, que escrevo
tenho o meu lugar. 
acho uma coisa impressionante como participam
do reino dos assuntos, todos
numa velocidade de semana a semana
e ficam todos assuntando a mesma coisa e trocam e trocam e trocam.
o reino dos assuntos é veloz,
deslocalizado.
não
tem
nem
onde
passar uma (lírica?) bola de feno
numa estrada deserta
num faroeste em que mocinho e bandido
vão duelar e quem vai vencer?
ninguém sabe quem.
no reino dos assuntos não dá tempo
nem de ver a bola de feno rolando no pó da areia
nem de ouvir a trilha sonora
nem de ver nos olhos do bandido o reflexo do homem bom
que ele foi, talvez ainda seja ?
quando cuida de quem quer bem.
no reino dos assuntos isso tudo parece
mas nada interessa de fato ao reino dos assuntos
a não ser ele mesmo
O Reino dos Assuntos
em seu mecanismo
trucidante e pouco imaginativo.
o reino dos assuntos
tem por inimigo de fronteiras o reino do silêncio
da espera
do entendimento
e, sobretudo, da passagem do tempo.

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

o verão em lisboa está meio mentiroso
mas eu não.
veja que as religiões só ensinam a confeitaria
mas eu não.

sou um albatroz
com uma plaquinha pendurada no pescoço.
é de aço
quando abro as asas
faz tlim-tlim.
só depois de vencer o seu peso
tornando-o meu corpo
alço o céu.

na plaquinha
do albatroz que sou
se lê
APRENDIZ

estou em alfabetização.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

Fumaça

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não posso deixar essa ilha sem escrever sobre o Fumaça.

filho de Pimenta, irmão de mesma barriga do Veneno, todo mundo acha que ele é muito mais velho (e mais bonzinho) do que o irmão. mas esse talvez não seja o maior equívoco de interpretação na sua história. este quem cometeu fui eu.

quando conheci o Fumaça em março eu achei que ele era mais um cão desses honestos, que não ligam de ficarem gordos e bobos, afinal nada nada nada é mais interessante no planeta terra do que comida. o fato de que ele exalava de maneira, digamos, tão forte, devia ser mesmo um resultado dele não fazer distinção entre os comestíveis, preferindo, sem dúvida, as proteínas e as gorduras.

como ele não tinha dos cheiros mais delicados dessa localidade, em março eu evitei tocar muito nele, preferindo as festinhas de presentes com comida mesmo. eu era hóspede, ele percebe a diferença, fez-se aquele limite entre nós.

quando nós voltamos em maio, percebi logo que o mais imprevisto, com a sua preguiça e gosto por ser ele mesmo, era muito mais ele do que o Veneno, que só tem cara de Cérbero, mas é o mais fiel (e dependente) cão do planeta. porém, verdade seja dita, se por um lado é o Fumaça que mata os saruês e ratazanas, que passam pelo seu caminho; e que morre de vontade de um dia conseguir pegar o Gleice de jeito; também foi o Fumaça quem primeiro acolheu e brincou com os pequenos cachorrinhos, que são órfãos, aliás.

mas essas percepções não foram suficientes pra que eu me aproximasse do Fumaça. e nem mesmo a insistência dos seus olhares e do ato quase reflexo da sua pata de unhas duras se levantando e batendo na coxa da gente, como quem diz ATENÇÃO EU! nem assim eu dei pro Fumaça aquilo tudo que ele merece. biscoitos, carinhos leves na orelha, pedaços da gordura da carne, cabeças assadas de peixe, sim, mas ainda não aquele abraço em que a gente vive governado.

acontece que o Fumaça tem um tipo de sarna que é de nascença, que o filhote pega da mãe. e essa sarna apareceu pequena, na pata dele, tão logo os donos dele o deixaram pra gente cuidar. eu tinha em mãos um sabonete com enxofre, e um spray antiséptico, com a instrução de aplicá-los durante três dias e tudo ok.

com que custo! eu tirava o Fumaça da cama dele, onde ele é capaz até de comer os restos de alguma coisa sem nem virar de lado. o Fumaça e a cama dele tem um velcro tão resistente, com seus muitos quilos e a força gravitacional do planeta, que eu só conseguia depois de muitas tentativas fazer com que ele se levantasse e fosse até a árvore onde eu o amarrava ao lado da mangueira do jardim. e como, afinal, se fosse comigo, que um desconhecido me arrancasse do meu conforto e me levasse pra onde eu não gosto, como eu mesma reagiria agressivamente, eu não tinha confiança na amizade daquele animal. apliquei os três dias e ok, pensei "passou", e deixei estar. eu, que era uma ignorante em termos de sarna.

menos de um mês depois, Carlinhos passou aqui, o Fumaça fez um carinho nele, virou o pescoço pra cima, até que Carlinhos disse "vixi! ele tá cheio de sarna!". era verdade: de tanto coçar a pata, todo o focinho dele, nas laterais e por baixo, e também logo embaixo do nariz, estavam cobertos de sarna e a pata do lado da primeira pata com sarna, também estava contaminada. eu não tinha reparado porque não sabia que sarna era uma coisa rosa. rosa não era pra ser inofensivo? cada engano nos passam as cores...

e então não tinha mais jeito, a gente ia ter que se aproximar. não dava pra seguir o conhecimento do Carlinhos, de que aqui matam sarna de cachorro com uma mistura de pólvora e suco de limão, que mata tanto na hora imediata que a boca do cão precisa ser amarrada, se não ele sai mordendo tudo que estiver pela frente.

meu pai estava aqui e me ensinou que a sarna é um ácaro, e que essas formas inferiores de vida morrem sufocadas com óleo, coisa que eu já sabia que funcionava com carrapatos. pesquisei na internet e descobri que melhor ainda se fosse morno. comecei a aplicar óleo no Fumaça, e o Fumaça gordo como é, vocês podem imaginar, o Fumaça adorou o óleo. adorou tanto, lambia tanto, que não dava pra saber se os ácaros tinham se sufocado ou não. e o Fumaça contente todo lambuzado, a areia prendendo nele, que adora uma boa porcaria & ele lambendo o óleo e a areia, uma maravilha!

e a sarna lá. aumentando. não tardou apareceram feridas abertas, cheias de sangue. quanto mais feridas mais culpada eu ia me sentindo, e ficava concentrada em não deixar aquilo crescer. limpava com sabão, passava o spray, e depois o óleo morno também. até aquele momento eu também não sabia que o tipo de sarna dele não passa nem pra outros cães, muito menos pra gente. eu imaginava com terror que todos os cães da casa iam ser comidos por aqueles ácaros, e então a visão do horror virou uma questão de espécie contra espécie: aí, humanidade, a guerra contra os ácaros a gente luta, a gente luta pra vencer?

como pessoa do nosso tempo que sou, procurei no google "remédios caseiros contra sarna": óleo + pó de enxofre.
como pessoa neta de pai de santo que sou, descobri uma planta cujo sumo apertado, mata pulgas, carrapatos e sarna. aqui na ilha ela se chama corana, mas as coranas que aparecem no google não são a mesma.

então, resolvi vencer, como 2+2+2+2+2 devem dar n'algum lugar: durante uns 10 dias intercalei óleo de copaíba, óleo de mamona, sabonete de enxofre, spray antiséptico, pedaços de babosa, sumo de corana, aplicações esporádicas de pó de enxofre com óleo de soja... e, pra ganhar, foi importante perder: perdi o nojo que eu tinha das feridas, perdi o medo que eu tinha que ele me mordesse. depois de uns dias eu mexia dentro da boca dele, com a cara há 2cm dos dentões dele e ele, por mais que não gostasse, ficava ali presente em confiança e segurança. eu nem me lembrava mais do medo.

sinceramente, foi tanta coisa, que não sei o que foi que o curou.

provavelmente foi um passeio, quando ele já estava quase bom. quando chegamos na praia de Bainema, a maré estava muito baixa, mas lá as ondas se mantém suficientes pra que sempre haja mar. o Fumaça estava felicíssimo de estarmos no sol, juntos e foi me puxando pra dentro do mar. andamos por uns quilômetros com a água nos meus joelhos, ou seja, cobrindo o peito dele.

todas as vezes que eu tentava voltar pra areia ele não deixava. entendi e respeitei que o remédio dele era não só o sal, o iodo, a água, a memória do mundo, o mar, como a própria felicidade com que ele me olhava em retribuição. naquele dia o Fumaça, correndo em direção ao mar, e me puxando pela coleira e olhando pra trás, como quem diz, "confia", o Fumaça me deu um fulminante olhar de amor e gratidão, que sem exagero, eu juro que nunca mais vou me esquecer.

é isso: Fumaça me ensinou o antigo e vivo óbvio: que o amor é, muitas vezes, uma sarna. e nela se descobre. sarna que vale cada um dos cuidados que a gente tem.

sábado, 2 de agosto de 2014

um epitáfio

meu querido ipod
que o eduardo me deu
era branco e funcionava
como poucos desde 2006

o eduardo é budista
o desapego é a liga
ah mas eu mas eu ah mas eu ah
mas eu mas eu ah mas eu

ouço a música dos passarinhos
do coaxar das rãs
das libélulas e no alto-mar
& não é o bastante

quero aquele rock cintilante
o abajour do meu crânio
quebrou, eu sei não
ligar pra essas coisas

o que será do metrô lotado
ah o que será do meu heroísmo
urbano, cavalgante
a velocidade passando em trinados

ah como poderei andar
sem mp3 ah amputaram-me
a perna ah perdi o meu baço
ah que exagero

vou fazer um epitáfio.

,

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

agosto

agosto começa sempre
não me lembro bem
quando eu era criança
voltávamos pras aulas
e eu já não tinha a ansiedade
do primeiro dia em fevereiro
e também não me incomodava
trocar a umidade de casa
pelos bancos frios da escola.

agosto não era muita coisa
além de no meio um dia
que minha mãe ficava triste
pois era o aniversário do meu avô
agosto não era muita coisa
além de no fim o aniversário
do meu irmão, meu herói patinador.

agosto não me dava desgosto
agosto não fazia os cachorros loucos
agosto passava como não.

meu mês era janeiro já é a revolução
porém nos destinos diversos
de uma mesma Terra fui errante
para o outro hemisfério
e embora lá não falassem a minha língua
a gente se entendia
e eu tinha (e tenho) muito a aprender.

inclusive sobre agosto.
agosto das auto-estradas lotadas
agosto das amêijoas
agosto de passar acampada
agosto de arranjar namorado
agosto de ir à praia no mesmo dia e voltar
agosto de muita música
agosto de nunca ficar doente
nem sofrer com essa dor de dentes
agosto místico & mítico
espalhado o corpo pelos 40 graus
de um jeito que nem as moscas voam
de calor.
agosto quando o vento do Saara traz areia
e as janelas e os carros amanhecem vermelhas
agosto das florestas incendiadas, dos bombeiros queimando de tantas chamadas
agosto do esquecimento da melancolia
agosto de nunca dormir
e quando dormir, dormir tão bem.
nada suposto
agosto se faz
agosto.

quarta-feira, 30 de julho de 2014

presença



o Flávio Rodrigo Penteado me entrevistou pra estréia da sua coluna Presença, na Revista Pessoa. as perguntas dele foram muito generosas e com isso pude pensar e uma série de coisas que me interessam: e dizer. entre outras coisas, falo deste blogue tão querido. é de se ler aqui.

sexta-feira, 25 de julho de 2014

viva canetti

meu grande amigo daniel tinha me avisado que havia certo risco em terminar o mestrado; que era o problema de depois de ter tantos lidos atravessado não conseguir, não querer, não ter vontade de ler nenhum autor, passar léguas nadando no vazio do não-escrito. foi o que me aconteceu durante coisa de um ano e meio.

somado a isso, como estudei poetas e ensaios na minha dissertação, devia fazer uns anos que eu não lia assim (com a dedicação do pleno absoluto mais que inteiro e vigoroso amor) nenhum prosador, romancista, nenhum desses grandes álibis do gozo para o tempo que passa pensante.

então esse ano fui ler o elias canetti, já que tanto carolina como cícero haviam me falado dele.

acho que é no segundo volume da sua biografia que o canetti fala da importância dos autores que nos aparecem quando nós consideramos que tudo está esgotado, de como há regeneração em tudo que está ao nosso redor quando descobrimos que determinado escritor nos será pra sempre um determinante.

não preciso nem dizer que o meu fogo, o princípio retornante do meu caminho, e que fica, foi e é o elias canetti.

hoje ele faria 109 anos.
e vai continuar fazendo.
 
 

quarta-feira, 23 de julho de 2014


6

Juventude, como eras outrora diferente! Não haverá súplicas
Que te façam jamais voltar? Existirá algum caminho de regresso?
Acontecer-me-á o mesmo que aos descrentes que no passado
Mesmo assim se sentaram no banquete divino com brilho no olhar,
Mas, em breve saciados, esses convidados em delírio,
Emudeceram então e agora, sob o canto das brisas,
Adormeceram sob a terra em flor, até que alguma vez
O poder de um milagre, aos que pereceram, faça
Regressar e de novo mover-se sobre o solo verdejante.
Um sopro sagrado percorre divinamente a figura de luz,
Quando a festa se anima e se agitam vagas de amor,
E na embriaguez celeste a torrente viva rumoreja,
Quando soa no subsolo, e a noite oferece os seus tesouros,
E, subindo à tona de ribeiros, o ouro enterrado cintila.







- - -
Hölderlin
Pranto de Ménon por Diotima — Elegias
Tradução de Maria Teresa Dias Furtado

sábado, 19 de julho de 2014

e cantar, e cantar, e cantar

para Maria Archer

Nós somos o fogo
somos também o telhado
em tantos jaguares
aves, confins já fui
transformada. E tive rumo.
Hoje não estou transtornada.
Nem tenho que quebrar
linhas pois sou aquele
que não cessa: o selvagem.
Ó selvagem comedor de linhas!
Que a nossa canção se faça
suficiente: manta de lã luminosa
E sem porquê utilizada. Amada!
Amam-se as peças & os ancestrais
se gastam. E se gestam.
Onde deus fez a morada. 

segunda-feira, 14 de julho de 2014

desde que cheguei nesta ilha
aprendi muitas coisas práticas.
a descascar mandioca
a limpar peixe
a cozinhar quiabo
a mastigar só do lado direito
a nunca andar sem lanterna no mato.
mas ainda não entendi
a vida sem lógica sentimental dos peixes

uns dias atrás concluí

que as saudades que eu sinto de Lisboa às vezes são tão grandes que mofa nelas.

domingo, 13 de julho de 2014

the soil, the soul,

Tenho sido entregue
às mais escuras
das noites mudas.
Que posso eu?
No entre desses espinhos?
Ando tão baixo
quanto as formigas
mas se arbusto não sou
por que tenho vivido
eu coberta de espinhos?
Da queda fez-se um ninho
maceradas folhas de sombra
abrigam o meu corpo.
É o esquecimento da terra.
Mas por que, por que
vesti-me de espinhos?
Se soy el temblor, o lugar
onde o trovão diz
EU é o meu peito
alargado.

sexta-feira, 11 de julho de 2014

Gleice

quem vê assim uma imagem do Gleice terá a impressão de que ele é um gato qualquer, certamente portador da distinção audaz que só um felino é capaz, mas um comum. e, sim, terá razão, afinal o Gleice é só mais um vira-lata muito misturado de raízes peludas e famintas.

mas o Gleice é muito mais do que isto! embora eu não conheça muitas coisas, de gatos percebo imensas e juro que o Gleice é o gato mais legal que já conheci. é um gato completo, de desenho animado, digo que o contratem para ser quem ele é, que o sucesso será (pois já é) absoluto.

a saga que podemos contar do bichano começou com Gleice miando para a noite sem mãe da capital da Bahia, quando Wölf (um alemão aportado no Brasil pelo acaso de uma vela quebrada no veleiro em que ia desde Gibraltar para o Chile) ouviu o pequeno de poucas semanas ávido por comida, desesperado de órfão. Wölf, que nunca tinha tido nenhum animal na vida, e que não tinha muitos lugares além de estar naufrago e não tardar em ir de carona até a Bolívia, resolveu que salvaria o pequeno.

se escondem nos miúdos felinos mil mistérios e como nunca tinha tido um gato, o alemão achou que nosso príncipe era uma princesa, e assim o chamou de Grace Kelly. Wölf alimentou Grace em conta-gotas, e levou-a para todos os lugares pelos quais viajou. primeiro foi trabalhar em Arembepe, lá se apaixonou e lá salvou Grace de uma matilha de 16 cachorros. vieram os apaixonados com Grace para esta ilha, e foi assim que nós nos conhecemos.

em março comíamos um bolinho de aipim num bar na praia quando um gatinho filhote veio na nossa direção, subiu no meu colo, roubou a minha comida e brigou com a minha mão até o fim dos dias. era a Grace. logo o filhote voltou para o colo do seu dono, quer dizer, para o dentro da camiseta do Wölf, que era sua casinha de transporte já fazia dois meses. percebendo que nós tínhamos ficado amigos, a namorada de Wölf veio nos perguntar se sabíamos de algum bom lugar em que o gato pudesse ficar, pois cada um seguiria o seu rumo e aqui nesta ilha não entram carros, o que eles consideraram como um bom lugar para um gato. acho que não notaram de imediato que a maior parte dos animais aqui passa fome, mas isso é outra novela.

no fim do dia Grace já tinha esta casa como sua, e também o meu veredicto de que os alemães estavam, nesse caso, enganados, e que a pequena era, na verdade, um pequeno. Grace em Gleice, assim é transformista. no dia-a-dia Gleice tem ganhado outros apelidos, sendo o meu preferido Glaisson Carlos, ou Gleice Jr.

o medo que todos tiveram era da convivência do filhote com os cachorros grandes, que aqui são muitos. mas hoje, passados alguns meses, o que acontece? Gleice atravessa colado no Fumaça e no Veneno, cães grandes, e dá patadas no focinho deles, como quem diz "se enxerga, seu canino". depois Gleice come da comida e da água deles, se lambe com sua superioridade.

raramente se vê em apuros, mas quando tem de correr pra cima de uma árvore, passando lá um tempão, miando, pedindo ajuda, com os dois agigantados rosnando embaixo. então Gleice tem de correr mais rápido que um disparo de pistola, e corre. às vezes cai num resto de água, e todo achincalhado continua se considerando o maior o melhor o mais feliz, e dá-lhe patadas no focinho dos cães.

com os cachorros, os filhotes, Gleice brinca como se fosse um deles, e não entende suas estratégias de mordidas, salta por cima em inesperados, e depois vai embora roubar comida dos hóspedes. sobe em cima de qualquer mesa pra comer qualquer coisa, de mamão à lagosta, dando a certeza de que sua fome é hereditária.

mata toda espécie de animal que se mexa, grilos, gafanhotos, lagartixas, ratos, besouros, desde que não sejam maiores do que ele. atualmente anda assassinando uma média de três ratos por semana. dia desses matou um ratinho muito filhote, e andava com ele ainda vivo na boca, o ratinho apitando a cada passo que Gleice dava, parecia uma piada, não fosse Gleice nesses momentos o mais sério dos felinos, já que com uma presa entre os dentes, Gleice rosna como um leão.

e grita! Gleice é desses gatos conversadores, que você fala com ele & ele responde. o mais engraçado é quando a gente vai na praia e ele, que foi nômade com o alemão, não está acostumado em não poder seguir onde quer que seja alguém, e fica furioso quando levamos um cachorro, e não ele, pra passear. grita, grita, grita, anda alguns metros e reclama. ataca siris, e mais ainda, ataca as ondas do mar quando elas lhe molham os pés. dá patadas no mar como se fossem um focinho de cão.

juro, juramos que duas vezes já o vimos entrando no mar pra acompanhar os nossos banhos. é certo que ele não entende direito o que é o acontecimento do mergulho, e que graça é que pode ter?, e meio enojadinho, com aquele comum enjôo dos gatos, agita a patinha num frisson-me-solta. mas, como a vontade de estar perto de Gleice é maior do que qualquer outra coisa, ele prefere ficar encharcado do que não se aproximar de nós.

que se diga isso quando ele está no nosso colo ou deitado na mesma cama. basta ter um tecido grosso, tipo uma manta ou uma rede, pra que Gleice mame como um bebê, fazendo de qualquer calor a mãe que ele perdeu e que encontra em toda parte. afinal, o que não falta pra esse gato é a mãe da Terra, a alegria, não tem tempo ruim, tudo é mesmo interessante,

as onças pensam só "bom-bom-bonito-bonito" já dizia João Guimarães Rosa, e Gleice estende tal certeza a todos os felinos.

sendo dos mais brincalhões, adora espertar a gente em sustos, se você estiver andando no meio da noite, no entre das pequenas trilhas e, de repente, um animal saltar em cima das suas canelas, pode ter certeza, é Gleice fazendo de ti aquilo que ele mais sabe: um inimigo-amigo, um feroz como ele, um vivíssimo.
 
 

sexta-feira, 4 de julho de 2014


sábado, 28 de junho de 2014

não tem fim

faz uns 6 anos que não vejo meu psicanalista.
esta noite sonhei com ele.
estávamos os dois num ônibus
daqueles bem lataria barulhenta
sentados lado a lado e olhando pela janela.
de repente perguntei, como quem nada
"ei! e aí?" e ele respondeu primeiro com um silêncio
sutil que foi formando um sorriso de canto de boca
olhou bem pra mim e disse, rindo,
"pois é, estamos vendo a vida passar".

quarta-feira, 25 de junho de 2014

e um cinto de cometas


Não foi a única vez que vi algo como o nazismo sob o efeito do chá. Houve uma vez ainda antes, que eu estava sozinha na parte de trás do salão, estava sentada muito perto da terra escura e se de olhos abertos eu via as plantas na minha frente, de olhos fechados eu via a guerra. Meu corpo estava muito inclinado para frente, pressionado, para não dizer destruído e incapaz de manter-se ereto no próprio eixo. Até que a guerra tomou conta de tudo, mesmo de olhos abertos eu via milhares de anos de guerras passando em segundos na minha frente. Homens se matando com lanças, mulheres sendo atiradas em fogueiras, pelotões de fuzilamento, corpos estirados em trincheiras, torturas, bombas. A destruição é indiscriminadamente ampla. Sem vitimas, sem heróis. Se olharmos a humanidade sobre um só ponto de vista, quem não veria a história da humanidade como a história da guerra? São complicadas as coisas que pensamos quando estamos muito próximos da destruição. A humanidade naquele momento era uma imensidão de cinzas. O solo da minha visão era cinzento e lodoso, como um charco que estivesse se tornando deserto e não havia preservação ou continuidade de vida. Restos de pessoas sendo arrastados por pessoas em restos. Fome dentro das carnes e troncos de árvores queimados. Havia chegado o dia de depois da guerra. De repente, vi a face do poeta, vi o rosto de Carlos Drummond de Andrade olhando aquilo tudo e pensei “ele, não eu, ele teve mãos para cantar isso”. E senti a dor que o poeta sentia, a dor que ele era capaz de sentir. E eu? “O poeta é isso”, pensei, “ele avisa as pessoas de que não é por aí, mas ninguém o ouve, e ele sabe que mesmo assim ele deve dizer”. Então pensei “deixa, Júlia, a humanidade correr na arena da história” e uma capa vermelha atravessou a minha visão, percebi a manada dos homens e mulheres através dos séculos, desembestada. E que segue. Não sou eu quem vai lhe dizer que fique. E se olhasse nos olhos de si mesma como quando olham os poetas, se veria mais animalesca do que qualquer animal. Livre de todo fardo de ter de avisar alguém resolvi caminhar. Tendo já caminhado um bocado, estando na frente de um barranco e atrás de mim uma luz de estrada, vi a minha sombra refletida na terra vermelha. Como eu tinha um cobertor nas costas, na sombra parecia a capa do pequeno príncipe. “Príncipe? Se sou um príncipe já sei quem sou! Só posso ser Hölderlin! Quando estiver na Europa novamente e falarem em Hölderlin? Hei de responder, Tá falando com ele.”. E fiquei rindo sendo Hölderlin com a minha capa vermelha, mas só na sombra do barranco. E na Europa, claro. 
 

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