sábado, 28 de junho de 2014

não tem fim

faz uns 6 anos que não vejo meu psicanalista.
esta noite sonhei com ele.
estávamos os dois num ônibus
daqueles bem lataria barulhenta
sentados lado a lado e olhando pela janela.
de repente perguntei, como quem nada
"ei! e aí?" e ele respondeu primeiro com um silêncio
sutil que foi formando um sorriso de canto de boca
olhou bem pra mim e disse, rindo,
"pois é, estamos vendo a vida passar".

quarta-feira, 25 de junho de 2014

e um cinto de cometas


Não foi a única vez que vi algo como o nazismo sob o efeito do chá. Houve uma vez ainda antes, que eu estava sozinha na parte de trás do salão, estava sentada muito perto da terra escura e se de olhos abertos eu via as plantas na minha frente, de olhos fechados eu via a guerra. Meu corpo estava muito inclinado para frente, pressionado, para não dizer destruído e incapaz de manter-se ereto no próprio eixo. Até que a guerra tomou conta de tudo, mesmo de olhos abertos eu via milhares de anos de guerras passando em segundos na minha frente. Homens se matando com lanças, mulheres sendo atiradas em fogueiras, pelotões de fuzilamento, corpos estirados em trincheiras, torturas, bombas. A destruição é indiscriminadamente ampla. Sem vitimas, sem heróis. Se olharmos a humanidade sobre um só ponto de vista, quem não veria a história da humanidade como a história da guerra? São complicadas as coisas que pensamos quando estamos muito próximos da destruição. A humanidade naquele momento era uma imensidão de cinzas. O solo da minha visão era cinzento e lodoso, como um charco que estivesse se tornando deserto e não havia preservação ou continuidade de vida. Restos de pessoas sendo arrastados por pessoas em restos. Fome dentro das carnes e troncos de árvores queimados. Havia chegado o dia de depois da guerra. De repente, vi a face do poeta, vi o rosto de Carlos Drummond de Andrade olhando aquilo tudo e pensei “ele, não eu, ele teve mãos para cantar isso”. E senti a dor que o poeta sentia, a dor que ele era capaz de sentir. E eu? “O poeta é isso”, pensei, “ele avisa as pessoas de que não é por aí, mas ninguém o ouve, e ele sabe que mesmo assim ele deve dizer”. Então pensei “deixa, Júlia, a humanidade correr na arena da história” e uma capa vermelha atravessou a minha visão, percebi a manada dos homens e mulheres através dos séculos, desembestada. E que segue. Não sou eu quem vai lhe dizer que fique. E se olhasse nos olhos de si mesma como quando olham os poetas, se veria mais animalesca do que qualquer animal. Livre de todo fardo de ter de avisar alguém resolvi caminhar. Tendo já caminhado um bocado, estando na frente de um barranco e atrás de mim uma luz de estrada, vi a minha sombra refletida na terra vermelha. Como eu tinha um cobertor nas costas, na sombra parecia a capa do pequeno príncipe. “Príncipe? Se sou um príncipe já sei quem sou! Só posso ser Hölderlin! Quando estiver na Europa novamente e falarem em Hölderlin? Hei de responder, Tá falando com ele.”. E fiquei rindo sendo Hölderlin com a minha capa vermelha, mas só na sombra do barranco. E na Europa, claro. 

o que interessa

quem só pode ver o cume, de tão grande que o todo é
quem entende que o canto pode levar a ver, o que é e o que não é
desses, eu sinto saudades.
o que o canto vê, o que o canto mostra, o que o canto transforma.

Veneno

fazendo a linha do livro dos animais desta ilha,

hoje vos quero apresentar o Veneno, cuja fama o precede, como o cão mais temido desta ilha, de pessoas mudarem de lado na praia ao vê-lo passar. porém não pode ouvir rojões de artifício explodindo nesses dias de Copa & São João, que Veneno entra embaixo da mesa, com as patas tremilicando, pede apoio enfiando as orelhas nas pernas mais próximas de quem encontrar.

quando chegamos por aqui eu também tinha medo dele, pelos rosnados profundos acompanhados de um fio de baba escorrendo da mandíbula, o olhar de cavalo insondável, desses que atravessa a galope a linha entre o vivo e o que não-é, apelidei-o nos meus segredos de Cérbero.

mas me avisaram: Veneno gosta de pessoas e se associa sobretudo as mulheres. o que pensei ser um exagero, mas em menos de dois dias estava confirmado: não há fidelidade maior do que a do olhar que ele carrega sobre mim. ele me seduz ao ponto de eu, se acreditasse nessas coisas, ter certeza de que fomos amantes em outras situações. se bem que se acreditasse mesmo, teria a certeza de que Veneno foi Don Juan, e o seria em todas as vidas.

atlético e potente, sempre cheirando bem, Veneno é também poderoso e capaz de se soltar em qualquer ocasião, mas somente com a intenção de ir atrás de nós. se estamos junto dele, ele nunca escapa. mas, na maior parte das vezes que passamos mais que poucas horas fora de casa, Veneno encontra um modo de nos encontrar onde estivermos.

no primeiro jogo do Brasil, por exemplo, estávamos voltando da vila, e apareceu o cão, feliz de nos encontrar, batendo o rabo de forma giratória. ou, ontem, há mais de 3 km de casa, meio dormindo tomávamos sol na praia, quando Veneno apareceu uivando para o mar. feliz de estar conosco entrou no mar, nadou, caçou os pássaros que caçam animais na orla, bebeu água dentro de um coco, voltou conosco, sem se meter com nenhum dos pequenos cães que queriam provocá-lo. e não há nada que Veneno sinta mais ciúme do que de cachorrinhos.

é chamar Veneno que Veneno atende.
é uma jóia do senso de comunidade (milenar) que une cães e gentes.
sim, ele está apaixonado & eu também.
 
 

terça-feira, 17 de junho de 2014

sobre (não) escrever

foi meu pai quem me ensinou a escrever. não que tenha sido ele a me alfabetizar e ,embora tenha tentado me contar todas as histórias do mundo pra que eu dormisse, nem que ele tivesse esgotado de tanta criação o mundo, nem assim ele teria me ensinado a escrever. uma vez, devia ter uns 9 anos e eu não queria fazer uma redação pra escola porque "não conseguia escrever", foi que meu pai disse: "escreva sobre não conseguir escrever". estava ensinada a escrita.
não sei porque esqueço disso tantas vezes e caio num movimento reflexivo tão agudo e ensimesmado que é um redemoinho de silêncio. quando retorno a escrita é como sinto esse movimento aqui: truncado, gago, minuciosamente equivocado. pouco treinado.
hoje, quando saímos da praia e entramos na trilha, no meio do caminho estavam esses cavalos. ao vê-los, imediatamente pensei sem receio nem culpa, dádiva ou reclusão: talvez eu tenha deixado de escrever pra sempre. então lembrei dos livros que já tenho publicados (não é grande coisa) e "que engraçado. se eu deixasse de escrever hoje e fizesse outra coisa completamente diferente como dirigir um navio, se eu me tornasse xamã, alguma coisa que me consumisse e a qual eu me entregasse tanto que se eu nunca mais tivesse de escrever qualquer coisa que não fossem apontamentos meus e unicamente meus... eu não sentiria angústia, nem liberdade. simplesmente os rumos teriam mudado tanto que eu acolheria os rumos como eles me acolhem: sendo." 
depois pensei no raduan nassar. meu analista dizia que achava que ele tinha parado de escrever pois sentia tanto ódio que o ódio o impossibilitava. e eu, se eu deixasse de escrever hoje, pelos grandes motivos da humanidade não seria, mas tão somente porque havia visto cavalos repentinos num caminho perto da praia, cavalos definitivos. 
& os cavalos soltos do mundo! sejam. repentinamente me deu vontade de escrever sobre não escrever. 
mas, pra pensar o que é não escrever, seria preciso entender o que é a escrita pra mim. pois eu ando por ali e escrevo uns emails onde podem nascer poemas, vou por lá e anoto uns posts no facebook, passo aqui nesse blogue menos do que me apraz, é verdade, verdade que aqui escrevo mais solto do que em qualquer outro lugar... mas, mesmo assim, não sinto que isto seja necessariamente "escrever" no que eu escrevo. são reflexos de segundo perto da formação de uma galáxia. então seria eu tão governada pelo mundo (capricorniano) do mérito, do esforço, que só me considero "escrevendo" quando estou num .doc Ou numa página de caderno que sei que vai virar um "livro", um "poema", um "ensaio"? certamente isso conta um pouco, mas em pequena parte só, pois não é só isso.
astronauta libertado cuja vida me ultrapassa em qualquer rota que eu faça / eu me sinto mesmo escrevendo quando estou escrevendo. falo tanto de cavalos, talvez, pois é o mesmo insondável que vejo nos cavalos e que não sei abarcar, o mesmo insondável que é matéria e órbita / da respiração, do futuro/ é certa atmosfera, certa atmosfera que combina prazer com controle, deslize com critério, ritmo com pensamento, que me faz "escreve"r. "escrever" seria, então, uma sensação?
cabe tanta coisa. 
não sou concreta / não sou exata. 
dito isso, "não escrever" é, por um lado, a falta de concentração em um trabalho que vai tomando forma de unidade acabada (poema, livro, etc) e, por outro, é a ausência de uma sensação atmosférica advinda do conjunto de Não Sei o Quê com impulsos mecânicos de digitação ou da textura da caneta sobre o papel.
e o que é que essa ausência causa tanto? 
repentinamente me deu sono, e este que seria o começo de um texto sobre "o que vivo ao não escrever", que "sensação que não escrever me coloca?", "etc", repentinamente esse texto se tornou escrito e o toda a escrita de hoje. espero amanhã ou depois (os dias numa ilha são cheios de imprevistos), espero continuadamente voltar a escrever sobre não escrever. 
evoé, meu pai! a benção, vovô.

sexta-feira, 13 de junho de 2014

de mim

tanto pra dizer. ser um pouco como o aniversariante do dia, não sto. antónio, o maravilhoso fernando pessoa. basta desejar profundo, ser intermitente e agudo. não é pra sempre, nem sei se hoje eu conseguiria. é lancinante.
quando escrevi o poema que escrevi sobre o sr. fernando pessoa e que está no pdddm eu vivia em portugal. se eu vivesse no brasil e escrevesse um poema sobre o sr. fernando pessoa, certamente o poema não seria aquele. hoje eu vivo no brasil, mas ainda não onde eu vivo mesmo, mas não é complicado, nem sou eu quem vai explicar.
o que eu acho que tenho de mais interessante para dizer é que antes eu achava que era paisagem, o mundo natural. que as plantas vibravam no sol sem porquê, afinal o meu mestre, o sol, diz assim. já hoje eu acho que tudo que é vivo está em comunicação. é claro que alguém que é uma antena está completamente zonza quando começa a perceber isso. 
tudo o que é vivo tem sua linguagem, mesmo as plantas, intraduzíveis. era por isso, então, penso eu, que tinha tanto medo do jardim quando era pequena. medo e fascinação. tudo que eu escrevo, desde o primeiro momento, é pra falar desse medo, é pra reinventar aquela fascinação. 
meu pai conta que quando eu era pequena eu tinha medo de que a lua caísse na minha cabeça, que em noite de lua cheia eu não saía no jardim. aí já é imaginação, entende? des-suportar a gravidade, fazer destroço das órbitas, é o meu mais antigo terreno de medo.
estou fechando alguns terrenos para abrir novos. mas como deixar a desolação tomar conta do que se abandona? será que tudo se trata disso, mesmo, apego ao conhecido? e que o rumor do desconhecido arfe menos, sibile mais, sussurre, melhor! faça dos meus cabelos fitas coloridas penduradas na entrada de uma cidade do interior. de mim.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Coragem



só pudemos saber aqui, que uma das coisas que viemos fazer nesta ilha foi conhecer e tratar do cãozinho aí. Coragem, seu nome é o que ele possui.

a mãe desses filhotes morreu uns dias após o parto, e a pele deles era tão fina, e o trópico tão intenso, que eles foram atacados por bicheiras, vermes comedores de carnes vivas.

quando aqui chegamos, disso eles já estavam curados. mas dois deles tinham desenvolvido processos de inflamação a partir dos parasitas que, vejo eu, são uns nojentos.

o cachorro mais debilitado de todos foi o Coragem, que frágil desde o início, anunciado como prestes a morrer foi inúmeras vezes. já ao nascer o Escuro, que trabalha onde estamos, disse que o único macho da ninhada não ia durar mais que poucos dias. Escuro é o sábio de toda ilha, mas até os sábios se enganam. ainda bem.

o cotovelo esquerdo do pequeno inchou de ele não conseguir fazer nada a não ser estar deitado. durante três dias e três noites Coragem ganiu e latiu e rosnou o tempo todo. não comia nada que não fosse lhe dado numa seringa, e como estamos na Bahia, passou alguns dias à base de água de coco. evoé! os frutos e os líquidos.

na mais crítica das noites, dormindo ao pé de mim, depois de ter uma convulsão pela alta febre, a respiração dele chegou a se dar só de cinco em cinco segundos. eu mesma disse "é hoje, ele vai morrer". tive certeza. confesso que até fiz coisa que não se faz, torci pela morte, pois o pequeno cão estava roxo e sofria tanto, tanto...

mas não, amanheceu e Coragem estava vivo, e pedindo por comida. nosso Coragem fintou a morte mil e duas vezes e com a grande imensa suntuosa magnífica e maravilhosa ajuda dos antibióticos que a espécie humana inventou (ou descobriu?) para estarem do nosso lado, o pequenino começou a desinchar. hoje, pela primeira vez, Coragem andou nas quatro patas e abanou o rabinho. ainda está um terço menor do que suas irmãs, mas já sei o que ele me ensinou: todo dia é dia de viver.

vamos lá, Coragem!
 

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