quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

rojões & heranças

acordei com um sicrano soltando rojões pelo bairro & me lembrei de que, algumas vezes, quando criança no fim da noite de natal eu chorava. chorava de frustração. sentia um aperto crescente, uma expectativa que não se completava nem com os melhores presentes do mundo. ainda deitada, desejei que o sicrano explodidor de foguetes terminasse a noite como essa criança que fui.

então me lembrei de que este ano eu e meu pai estávamos no trânsito dos arredores da rodovia Raposo Tavares, indo ao cartório eleitoral da cidade de Cotia, quando eu fiz pra ele uma pergunta fulminante, pra ver se ele parava de reclamar dos estúpidos que não sabem pegar a rotatória da maneira certa, ou que correm mais do que Hermes pisando em fogo, ou que deixam buracos na estrada, ou que...

não sou batizada em nenhuma religião, não tenho crenças e mesmo a fé às vezes me falta mais do que eu gostaria. cresci ouvindo meu pai dizer que meu avô caçador-curandeiro-bon-vivant foi até a escola do meu pai brigar com um professor. o motivo? por conta do pecado: meu pai era criança e o professor tinha lhe dito que ele não poderia fazer alguma coisa porque era pecado. meu pai chegou em casa e perguntou pro meu avô: "pai, o que é pecado?" e o meu avô, iradíssimo, respondeu: "pecado é comer palha!". e foi até a escola e disse para o professor que se ele metesse novamente aquelas ideias na cabeça do meu pai ele faria o próprio professor comer palha.

quando estudei nas Letras da USP ouvia uns boatos de que meu pai sabe o que sabe sobre o século XVII porque teria sido seminarista! e lembro dos risos que dávamos disso falando dessas histórias do vovô. cresci, portanto, ouvindo meu pai dizer que meu avô não gostava de nada que passasse perto do cristianismo e tomei isso com uma crença fulcral na herança da minha família paterna.

então estávamos em Cotia, tentando achar uma via para subir para o centro, meu pai dirigindo e sendo fechado por outros carros, aquela aridez de beira de estrada, ele mesmo disse "São Paulo é toda linda, toda linda nessa perspectiva Waste Land" e quando cometeu impropérios sobre os transeuntes, eu fiz o que às vezes faço, uma pergunta lançada do nada ao sábio: "papai, o que você acha de Jesus Cristo?".

ele respirou fundo, começou com um "bem" e me respondeu "ele era um cara legal, tinha uma mensagem excelente, que ninguém ouviu direito. se tivessem ouvido, toda a história seria outra. por exemplo, 'amai-vos uns aos outros como a si mesmos', seria maravilhoso, não seria?... mas na prática! é impraticável... olha o que esse imbecil está fazendo!" e apontou para um motoqueiro avançando em cima da faixa de pedestres. respondi: "nossa, nunca imaginei isso, achava que você não simpatizava com a figura". e ele "não é uma questão de simpatia, é uma questão de vida: ele dizia: 'atire a primeira pedra quem nunca pecou', isso é uma liberdade, ficar cagando regra na vida dos outros é uma mensagem não-cristã, os caras não entendem nada... não entendem nada nem de liberdade, nem de perdão".

lembrando de tudo isso, me levantei da cama, não sem antes ouvir mais um rojão do vizinho a quem eu deveria amar como a mim mesma, como ao meu sono, o sonho de todos, o pai. o meu, aliás, vai passar os próximos dias dizendo

NATAL É FATAL

é assim, viva e deixe viver.

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