terça-feira, 23 de junho de 2015

uma das coisas mais fodidas do sofrimento é que ele, por dar mais peso, parece ser mais real e, sendo mais real, maior merecedor de sentidos do que a alegria.

quantas vezes a lucidez que acompanha o sofrimento percorre concatenações que criam motivos e razões e sentidos e lógicas?

o alegre por si só é um bobo que gosta de fazer sorrir outro alguém, por quê? por nada, oras: a alegria não precisa de nenhuma legitimidade, motivo qualquer para existir, ela simplesmente é. como uma pluma, é certo, móvel, volátil. ou, mais resumidamente: "tristeza não tem fim / felicidade sim".

segunda-feira, 22 de junho de 2015

na berma do caminho

Ver assim: a escrita é uma passagem: a gente deixa passar: dizer: eu estava no ônibus uns dias atrás, voltando desesperadamente para casa, o quanto eu precisava de casa. E na autoestrada, vi bem de noite, na margem contrária, uma menina (desconfio) andando toda encapuzada, sozinha, no acostamento do outro lado. Ela parecia ter em frente um farol, embora estivesse, discretíssima no escuro fazendo da estrada a sua linha reta, como se mudasse de cidade no escuro, ou atravessasse um período de necessária solidão, ou fartou-se do carro e foi adiante como vamos: com os pés. Era ela uma guardiã da noite, muito de longe, eu passando ao contrário e em outra velocidade, me peguei pensando que talvez talvez ela tivesse desmontado o porta-malas de um carro e aquela mochila que ela levava nas costas era, profundamente, o seu próprio escondido. Tinham dezenas de olhos que olhavam para o seu escondido, mas todos estavam cegos. Profundamente auxiliadores. Eu a vi por menos de cinco segundos e hoje ainda me lembro perfeitamente de como admirei sua audácia e torci pela sua segurança. Não sei quem ela era, talvez a perdição que ela se meteu me desfizesse irremediavelmente o ser quem sou, talvez o acaso que a colocou naquela estrada nunca pudesse ser o meu, porém tive certeza que sua indescritível fé no ir adiante nos tornaria, para sempre, irmãs de rumo e luz. Isto sem falar no belo capuz.
Na berma, que é uma palavra muito melhor do que acostamento, eu mesma não estou acostumada a fazer sentido quando escrevo: o planejamento não me serve de trajeto, digamos toda escolha é arbitrária, a razão engendra subterfúgios, é melhor não tentar alguma coisa lógica, ser só essa antena a que chamamos vida. Você então só sabe falar falar e falar difícil? Difícil, ainda por cima, querendo contar uma história completa, mas só tem rumores.

as línguas bárbaras

em sonho eu caminhava por entre duas camadas de terra, escrevendo essa frase agora me lembrei que eu escrevi um livro que fala da escavação de um túnel, as coisas que podemos nos esquecer. e que lembramos de nos lembrar. amassei uns ramos de planta no profundo de uma tigela, para um preparado verde, que mais tarde vou tomar: ela ajuda na absorção de outra plantas: planta: aquilo em que não me vou tornar, embora seja a única coisa que me interessa fazer nesta vida: que elas me ensinassem a viver harmoniosamente entre luz & sombra: vento vibrando. vulnerável eu sou, três vezes minha garganta inflamou, é como se eu estivesse a dizer o tempo todo: falo, depois penso: a velocidade do esquecimento. neste momento me coça a base do pescoço: é porque estou efetivando o meu desejo: escrever. hoje, que era meu primeiro dia de descanso, corri o dia inteiro, até o banco eu fui: pagar o que estava em atraso. mas hoje não quero falar de dinheiro. 

é como se um besouro estivesse se deslocando na minha faringe: eu sei, quando um poeta ganha uma nova personalidade ele, ela, no caso, eu não ganho só uma nova pessoa em mim, mais disruptiva talvez pela via da sinceridade, recebo é uma nova forma de dizer: eu. todas as formas de dizer eu me interessam, é por isso que, via de regra, respeito a paixão de qualquer um que vive e tinha paixão? sim. sou dessa turma. não estou ausente, não, estou só um tanto quanto agitada. queria exclusivamente me sentar nas minhas próprias coxas e ler, ou escrever, mas as próprias coxas saíram antes, foram não sei para onde, isto que tenho aqui não são próteses, são as minhas coxas, mas ainda não são as minhas. embora sejam. 

acho que estou escrevendo excessivamente "embora". minha eterna vontade de fugir tem diminuído com o passar dos anos. talvez, como as maiorias, eu esteja me tornando um capitalista, embora nenhum sofá, atualmente, consiga me prender por muito tempo, quase sempre porque estou resolvendo algo de muito fundamental & ao mesmo tempo prosaico. tão prosaico quanto sobreviver. queria ter raízes e ler a Odisséia, alguma coisa que me trouxesse de volta a mim mesma, mas isso é tão só uma movimentação do desejo como qualquer outra ausência. três páginas de prosa me entendiam, doze me fazem querer mudar de país, cento e cinco acho que morri!... e a poesia? leio pouco meus contemporâneos, afinal já respiramos o mesmo ar, deve ser suficiente. 



embora os emboras ando escavando quer dizer repentinamente ouço num buraco da minha memória alguém me estendendo a mão: sou sempre eu mesma: que tornei a voltar e a voltar e a voltar: enquanto amassava os galhos da planta que sou e portanto me protege (tudo que sou é meu amuleto): lembrei das plantas que eu amassava quando criança, num pote com água, muitas marias-sem-vergonha (ou qualquer outra coisa que eu não saberia ainda, se iria ou não, me tornar), trevos de 3 folhas (a sorte que me sobra me faltou para ver de 4) e depois, um tanto quanto frustrada porque ninguém via aquela magia e nem eu mesma era capaz de perceber o perfume, tudo ficava na intenção. com o tempo vamos aprendendo certas técnicas, por exemplo a de que a frustração não leva a nada que não seja radicalmente transformador e a transformação é, em si, uma raridade. embora não exista nada de mais interessante do que ela. nem o meu atribulado imaginário povoado por séries do netflix saberia perceber algo tão rumoroso, verdejante do que aquilo que estala.

no jantar também, peguei a coxa de frango com as mãos e com os dentes parti os pedaços de carne que eu desejava para dentro de mim, o óleo que vem parar nas mãos é só uma opção de que os talheres são um privilégio desta era, mas que poucas coisas sabem tão bem do que meter a mão num pedaço de bolo, ter na ponta dos dedos um chocolate meio derretido, o eterno prazer da alimentação, minha preferência pelas coxas acima de qualquer outro pedaço e, subitamente, transportada fui para a sala da casa em que cresci. foi a segunda vez no dia de hoje. não é todo dia que temos no máximo 8 anos, mais uma vez. o medo de dormir passou. o coração continua.

domingo, 21 de junho de 2015

Poema

A minha vida é o mar o Abril a rua
O meu interior é uma atenção voltada para fora
O meu viver escuta
A frase que de coisa em coisa silabada
Grava no espaço e no tempo a sua escrita

Não trago Deus em mim mas no mundo o procuro
Sabendo que o real o mostrará

Não tenho explicações
Olho e confronto
E por método é nu meu pensamento

A terra o sol o vento o mar
São a minha biografia e são meu rosto

Por isso não me peçam cartão de identidade
Pois nenhum outro senão o mundo tenho
Não me peçam opiniões nem entrevistas
Não me perguntem datas nem moradas
De tudo quanto vejo me acrescento

E a hora da minha morte aflora lentamente
Cada dia preparada

- - - 


Sophia de Mello Breyner Andresen

sábado, 20 de junho de 2015

morte ao meio-dia


No meu país não acontece nadaà terra vai-se pela estrada em frente
Novembro é quanta cor o céu consente
às casas com que o frio abre a praça

Dezembro vibra vidros brande as folhas
a brisa sopra e corre e varre o adro menos mal
que o mais zeloso varredor municipal
Mas que fazer de toda esta cor azul

Que cobre os campos neste meu país do sul?
A gente é previdente tem saúde e assistência cala-se mais nada
A boca é pra comer e pra trazer fechada
o único caminho é direito ao sol

No meu país não acontece nada
o corpo curva ao peso de uma alma que não sente
Todos temos janela para o mar voltada
o fisco vela e a palavra era para toda a gente

E juntam-se na casa portuguesa
a saudade e o transístor sob o céu azul
A indústria prospera e fazem-se ao abrigo
da velha lei mental pastilhas de mentol

O português paga calado cada prestação
Para banhos de sol nem casa se precisa
E cai-nos sobre os ombros quer a arma quer a sisa
e o colégio do ódio é a patriótica organização

Morre-se a ocidente como o sol à tarde
Cai a sirene sob o sol a pino
Da inspecção do rosto o próprio olhar nos arde
Nesta orla costeira qual de nós foi um dia menino?

Há neste mundo seres para quem
a vida não contém contentamento
E a nação faz um apelo à mãe,
atenta a gravidade do momento

O meu país é o que o mar não quer
é o pescador cuspido à praia à luz
pois a areia cresceu e a gente em vão requer
curvada o que de fronte erguida já lhe pertencia

A minha terra é uma grande estrada
que põe a pedra entre o homem e a mulher
O homem vende a vida e verga sob a enxada
O meu país é o que o mar não quer

- - -

Ruy Belo

segunda-feira, 8 de junho de 2015

inquietação é desvio

o que realmente me assusta nos dias de hoje é sabermos/pensarmos que embora os milhões de milhões de galáxias que já estão m a p e a d a s por aí o universo não é infinito. o universo tem um limite, tem um lugar que o universo: ACABA. não bastasse perder muito a graça das crianças que não podem mais dizer (sem mentir) a beleza de multiplicar infinito vezes infinito, afinal o universo não só tem limite como ele é curvo. o universo acaba em uma curva!

f o l h e a r

ontem saiu isso aqui, são poemas do meu livro inédito que já existe-e-ainda-não.

domingo, 7 de junho de 2015

como isso?

nos sonhos e nos sons tesoura e tijolo não existem, mas lá estão.
como pode o universo ser finito?
fingir que não ligo,
eu não? grito.

quarta-feira, 3 de junho de 2015

VERGAR

estava na avenida paulista quando mordi um crepe
olhei para o céu e vendo a lua me emocionei
não pelo satélite velho e cheio, antiquíssimo
muito mais estruturado do que meus ossos.
no entanto, que felicidade! mordi com a mandíbula
os dois lados funcionando por igual
foi como se Urano começasse a orbitar mais pra baixo
e acertasse, assim, a testa de quem não sabe vergar.
 

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