sexta-feira, 30 de junho de 2017


Posso te esperar a tarde inteira
atravessar você — o precipício
ou te chamar de Canyon
e colocar uns pássaros voando nele.

Posso te mostrar a parte de dentro
das coisas, da carne — posso me rechear
inteira de cuidados, lanças e perfumes
e desmontar à tarde todas as coisas.

Posso inventar-nos um desfecho
te chamar de ilha, charco, travessia
esquecer eu não posso — posso
dizer que eu irei me lembrar.

Posso perguntar pelo tempo
e assim conversaremos sobre o breu
normativo & inconstitucional desses dias
e de como não seremos derrotados.

Um pelo outro, talvez, não.
Só você sabe que eu não como a ponta dos pães
mas não sei como poupar as bordas das coisas,
limpar ou usar uma coisa até o fim também não é comigo.
Você também já viu de perto como eu posso perder o foco
ser levada pro invisível das coisas
e depois de muito me perder
de lá trazer mensagens muito claras.
Você já viu o cerne do meu medo
e o quanto eu posso sentir medo
e que eu o herdei. Antes de mim
quantos da mesma espécie —
os iconoclastas com rigor — falharam
como você e também eu falhamos
uns com os outros? Eu já te disse
preferia que não conversássemos
nesses termos de erro
porque tanto no meu caso
como no teu
o perfeccionismo leva ao incêndio
e tem sido boa esta temporada
de silêncio. Afinal, entre nós o intervalo
sempre foi uma forma de ligação.
O primeiro SMS que você me mandou
falava que onde você estava o céu tinha estrelas.
Eu estava no Sul, você no Norte
e o teu país era o meu também.
Não chovia, mas eu não via um só brilho
no céu — eles estavam todos em mim
e como eram só teus
não te entreguei o facto.
Contigo não preciso nunca entregar nada
já está tudo sempre entregue
e eu inventei que tinha visto as estrelas.
Hoje você sabe que eu exagero em tudo.
Posso até ter falado dos satélites
que vemos andando devagar no céu dos lugares
em que o céu à noite é muito limpo
há pouca luz elétrica ao redor
então as pessoas falam ora direis os alienígenas
e no entanto — você também sabe— deve ser a emissão
da BBC ou da NASA, ou alguma instituição que nunca
saberei muito bem o que significa
ou algo menos definido do que isto
mas você leu em algum livro a respeito
e você não vai me contar o que leu
porque acha que, no fundo,
nada disto me interessa
no fundo você acha que nem você me interessa
embora teus olhos sejam o veículo do meu fascínio
e eu sei que isto é só uma forma
de você se manter comigo
no teu silêncio, no teu mistério.
Que é uma forma de sofrer no mundo.
Logo de início percebi que você
nunca se tornaria ausente
nem na solidão emaranhada
onde você se enfurna
abisma os teus lugares
reconhece e alimenta os monstros
pacifica e encontra luz —
onde eu espero que você nunca
me leve. Mesmo quando eu me esqueço
que estamos um ligado ao outro.
Mesmo quando eu quero te aniquilar.
E ainda enfim quando reina o silêncio
depois duma disputa, ou durante
o sono profundo, distante
ou ao redor
você não some
você nunca se ausenta
mesmo nos milênios
que se esquece
de falar comigo
que se fecha
e desaparece
eu nunca duvidei
da tua presença.
a primeira coisa que eu quis de um poema
foi que ele falasse da dor que eu sentia
e o poema me ensinou a desaparecer
a segunda coisa que eu quis de um poema
foi que ele me ensinasse a caber nas situações
e ele me ensinou ventura e quebranto
a terceira coisa que eu quis do poema
foi que ele me levasse pelo braço
mas ele só tinha cauda e tempo pra outras coisas

ele só tinha tempo para outras coisas e eu estava tão cansada
de estar disposta à todas as coisas que parecia a chegada
do estado reverso — o temporário estar naquele lugar
sobre o qual falamos à noite — que escuridão

é tanta coisa que a gente vai vendo que vai se fascinando com elas
e pra mim é muito importante esse lugar de não dizer as coisas muito corretamente
porque se eu perco esse lugar se é só o lado já burilado do acontecido
um poema concebido como diz o meu amigo
tem tanto burilado antes do não-planejado
porque nascemos no claro morremos no escuro vivemos no claro e no escuro
é uma reciprocidade danada a que não se dá

e o medo que a gente tem de ficar mais um tempo num determinado lugar
ou o medo que é preciso que a gente tenha pra se aceitar um pouco adiante
do que estamos — e a falta de sentido que é preciso fazer se jogar pra dentro dela
pra poder entender alguma coisa, vivenciar algum sentido inúmero
é o meio o meio o privilégio — de ter uma coisa após a outra após o tudo

que é mesmo um meio de antes do depois. isso. nada.

quinta-feira, 22 de junho de 2017

tenho pensado que o trabalho do xamã, não sendo exatamente autoria nem interpretação, certamente é uma assinatura.

*

vi um rapaz a cantar numa cerimônia de ayahuasca e ele tinha a técnica e a língua do canto, ele tinha os canais abertos, mas ele não tinha o próprio espírito a cantar: ele não assinava. que curioso foi isto — percebi que não havia assinatura em um canto. isso fazia do acontecimento todo muito desenraizado. a falta de espírito próprio, a falta de gesto de assinar criava uma falta de ligação nos vínculos que o canto cria.

*

dia desses devo escrever sobre como acho que uma normatização tácita de termos, que aumenta conforme a ayahuasca entra (a cada dia) na moda, um hábito de usar as mesmas palavras-chave como "medicina" ou "consagrar" acaba criando uma língua em comum que amarra as experiências e, por vezes, mascara uma série de vazios espirituais.

escrever que a normatividade da língua sempre sempre sempre inclui / esconde uma moral. a moral é gasta e encardida. um beijo no roland barthes & outrxs tantos que me ensinaram a ler e que seguem tomando ayahuasca em mim.

*

& outra coisa: é o que me disse uma vez uma xamã (a minha preferida, aliás): só a luz opera, mas as transformações só acontecem no escuro.

domingo, 18 de junho de 2017

A VENTANIA NÃO ALIVIA

É bom que nosso amor vá ganhando
assim uma dimensão humana
que a gente não tenha que atravessar paredes
mas só as correntezas, as colinas
os dias em que neblina na descida
ao subterrâneo de nós mesmos
— e, sem dilaceração, convivemos.
A curva dos dias que se tornaram anos
mostra que o ponto
de um ponto ao outro
em nada retilíneo
desenhou um círculo entre nós.
Isto a cada dia me acalma
conforme as fúrias e as suas ventas
arrancam aos pedaços
os horizontes, as perspectivas
com pouco ou nenhum interesse
no que nos acontece
tenho todos os dias as mãos cortadas.
Dia desses fritava um hambúrguer
quando o fogo subiu pra cima da frigideira
e aquele pequeno incêndio que eu vi
eu pude assoprá-lo sem precipitação.
Confesso que, quando deu certo, tremi
um pouco nas bases, mas não deixei
que se instalasse o desespero
dos que estão imersos no destino.
Um dia é cedo no mesmo dia é tarde
e a ventania não alivia o calor.

sábado, 17 de junho de 2017

sonho tantas vezes que estou em hotéis que concluí

* nunca me sinto completamente em casa
* viajar é a osso de toda experiência (uns 35% dum mapa em Sagitário)
* até meu inconsciente é burguês


*

o que eu quero contar é que no sonho da última noite o hotel ficava em cima do mar. o gerente que me recebia ainda no lado da terra tinha os cabelos compridos clareados com parafina e um tridente (sim, o gerente tinha o tridente de Netuno) num dourado purpurina bem pride.

ele me mostrava a ponte que levava pra dentro do hotel e na areia da praia ao redor da ponte muitos banhistas tomavam sol, alegres e cheios das plenitudes da beira do mar num verão. então o mar — azulzíssimo que chegava a ser insuportável de tanto brilho — avançou toda a espuma em ondas imensas passou por cima de todos os banhistas. que, detalhe, sequer se mexeram com aquelas lambidas intensas das ondas.

sorri pro rapaz do tridente, que sorriu para mim e disse: "agora que já vimos o que acontece, podemos entrar, onde estão suas malas?". "nas minhas costas", respondi.

Touro


faz mais de um mês que estou pra postar este texto sobre o signo de Touro. e ainda farei uma piadinha capricorniana (que sou): "é que Touro demora". demora porque tem que acumular força, desejo, ímpeto, até agir e avançar com toda a sua intensidade. densos, estáveis, são tão capazes de enfrentar qualquer coisa como de adiar o enfrentamento de cada coisa o mais que se possa. Touro é capaz de mover uma montanha depois de ter se tornado a própria montanha.

signo de inércia, Touro se sente tão bem no seu estado montanha como quando dispara feito trem-bala. a dificuldade para Touro está na transição entre um estado e outro da matéria. signo de Terra, Touro divide com Virgem e Capricórnio o domínio da matéria e da sensação. Touro é a matéria mais jovem de todas, Touro é a aparição do corpo e de todas as sensações que um corpo é. freio para o exagero de ímpeto de Áries, Touro medita a plenitude das coisas, sendo o ápice da primavera no hemisfério norte.

se Áries é o "eu", Touro é o "meu". assim como Áries, Touro tem vocação pra ser do próprio jeito sem nem sequer observar o ao redor. redor? isto lá é coisa que Gêmeos vai inventar com a linguagem, Touro é o reconhecimento do corpo, este ser vivo cheio de vontades, desejos e imperativos. o ao redor pra Touro é o que pode estabelecer ligações de posse e sensibilidade para o seu eu, o corpo. pragmáticos, simplificadores, taurinos podem ser tão refinados quanto sintéticos.

auto-centrados, sim, egoístas, muitas vezes, os taurinos criam vínculos com a matéria ao redor pra que ela confirme e forneça a energia da sua força. são primários como uma criança, pois o mau humor (que por vezes neles torna-se uma constante) quase sempre é fome ou sono. ao mesmo tempo, quando amam, quando são amigos, taurinos podem fornecer toda a energia que têm para amparar, sustentar, dar chão para alguém. tem uma força de trabalho, amparo e firmeza incomparável.

há quem diga que eles têm a força do boi, que podem carregar qualquer coisa que desejem atrelada no pescoço. mas quando não querem empacam, são inamovíveis. tentar, por exemplo, convencer um taurino a mudar de ideia é o mesmo que pedir pra que uma montanha se mova. vibráteis, taurinos podem ser delicados como uma flor de camomila tomando sol e brisa, como podem ser brutos como a pata do Touro que esmaga a flor sem nem sequer vê-la.

sensuais, passionais, obsessivos e cheios de segredos como seus antagonistas complementares (os escorpiões) taurinos são muito menos emocionais do que estes, mas Touro também é sensibilíssimo às atmosferas e aos ambientes. talvez seja por isso que procurem e conheçam a priori o que é beleza, o belo. em Touro beleza e conforto são uma mesma coisa. esta simplicidade é, sem dúvida, uma das sabedorias de Touro.

Touro bem vivido está sempre rente ao nutrir-se de prazer, taurinos costumam ter o paladar exigente, conheço alguns que cozinham como deuses, e que também podem saltar da calmaria ao nojo com algum cheiro incômodo, um alimento mal feito. são exigentes com o prazer e quanto menos plácidos estão, mais aversões encontram. pessoas com ênfase no signo de Touro podem ficar viciadas pela avidez das sensações e aí passarem a vida a sofrer de incompletudes ou a se estourar pelos excessos de permissividade, a letargia do prazer. são, com ênfase e vitalidade, uns exagerados.

regidos por Vênus, muito se fala da sensibilidade de Touro que pede com que tudo na vida tenha o ritmo que o corpo mandar. é por um respeito ao ritmo orgânico, que taurinos ficam tão contrariados quando pedem pra que eles se apressem. Touro é ritmo. é também a vibração das cordas vocais, Touro é a voz, a garganta. essas áreas de desejo.

é o signo da minha Lua, sou casada com um taurino, tenho dezenas de amigos de Touro e, curiosamente, um punhado de ex-amigos de Touro também. como uma anedota biográfica conto que sempre que espero meu marido pra gente sair (o que acontece toda vez que a gente sai), primeiro me incomodo por estarmos atrasados (sozinha eu nunca me atraso), depois de muito observar me lembro como ele é bonito por estar só colocando o ritmo real do tempo nas coisas. que métodos, adeus calendários, pra que relógio? o tempo da Terra, o tempo está na matéria do corpo: Touro.

é fértil, constante e fecunda, a Terra de Touro.

sexta-feira, 16 de junho de 2017

Só você sabe que eu não como a ponta dos pães
e que não sei como poupar as bordas das coisas
limpar ou usar uma coisa até o fim também não é comigo.
Você também já viu de perto como eu posso perder o foco
ser levada pro invisível das coisas
e depois de muito me perder
de lá trazer mensagens muito claras.
Você já viu o cerne do meu medo
e o quanto eu posso sentir medo —
e que eu o herdei.
Antes de mim quantos da mesma espécie falharam
como você e também eu falhamos
uns com os outros? Eu já te disse
preferia que não conversássemos
nesses termos de erro
porque tanto no meu caso
como no teu
o perfeccionismo leva ao incêndio
e tem sido boa esta temporada
de silêncio. Afinal, entre nós o intervalo
sempre foi uma forma de ligação.
O primeiro SMS que você me mandou
falava que onde você estava o céu tinha estrelas.
Eu estava no Sul, você no Norte
e o teu país era o meu também.
Não chovia, mas eu não via um só brilho
no céu — eles estavam todos em mim
e como eram só teus
não te entreguei o facto.
Contigo não preciso nunca entregar nada
já está tudo sempre entregue
e eu inventei que tinha visto as estrelas.
Hoje você sabe que eu exagero em tudo.
Posso até ter falado dos satélites
que vemos andando devagar no céu dos lugares
em que o céu à noite é muito limpo
há pouca luz elétrica ao redor
então as pessoas falam ora direis os alienígenas
e no entanto — você também sabe— deve ser a emissão
da BBC ou da NASA, ou alguma instituição que nunca
saberei muito bem o que significa
ou algo menos definido do que isto
mas você leu em algum livro a respeito
e você não vai me contar o que leu
porque acha que, no fundo,
nada isto me interessa
no fundo você acha que nem você me interessa
mas teus olhos sabem o meu fascínio
e eu sei que isto é só uma forma
de você se manter comigo
no teu silêncio, no teu mistério.
Que é uma forma de sofrer no mundo.
Logo de início percebi que você
nunca se tornaria ausente
nem na solidão emaranhada
onde você se enfurna
abisma os teus lugares
reconhece e alimenta os monstros
pacifica e encontra luz
onde eu espero que você nunca
me leve. Mesmo quando eu me esqueço
que estamos um ligado ao outro.
Mesmo quando eu quero te aniquilar.
E ainda enfim quando reina o silêncio
depois duma disputa, ou durante
o sono profundo, distante
ou ao redor
você não some
você nunca se ausenta
mesmo nos milênios
que se esquece
de falar comigo
que se fecha
e desaparece
eu nunca duvidei
da tua presença.

terça-feira, 13 de junho de 2017

hoje fiz algo arriscadíssimo: li em voz alta e em público meu poema preferido do fernando pessoa (e este é do alberto caeiro) e trechos do cântico dos cânticos — atribuído a salomão — na tradução da fiama .

me diverti tanto.

cada dia mais entendo que é a parte solitária da vida que nos toca num poema, mas através do grande ser vivo em comum que existe, que é o comum da linguagem verbal, a linguagem do verbo como encaixes do que vai vibrar pra um ou outro.


acho impressionante quando estou em cerimônias de ayahauasca e não entendo nada do que o xamã canta na língua dos shipibo ou dos huni kuin e de repente alguém fala uma palavra numa língua que eu entendo. a palavra aparece sempre como uma chave de fenda, um martelo, uma pinça. a palavra muda tudo.

ando a cada dia mais atenta às vibrações que sinto no meu corpo enquanto convivo com as pessoas, elas permitem com que eu conviva sem tanto medo dos outros. e essa coisa de estar em público trazer o ressoar das moléculas num em comum — enquanto lia o caeiro sentia a alegria de haver palavra, quando li o cântico a alegria de que a palavra possa ultrapassar a si própria, a palavra-transe, a palavra-eros.

quando lemos um poema toda a linguagem de uma vez atravessa este corpo-espaço, através dos afetos sensações rumores jogos lógicas o nonsense. o poema projétil — o poema pedra.

se toda alegria é compartilhada dar a voz é um lance muito louco, a voz de um poema imenso ilumina a garganta e — durante esta travessia — abre os canais todos.

fica tudo aceso. o poema é uma tomada, afinal.
 

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