terça-feira, 24 de março de 2015

no dia da morte de herberto helder

faz uns dez anos. eu estava na universidade de são paulo, fazendo uma matéria de manhã, porque queria me formar. eu detestava, naquela época, a manhã. eu preferia sumir do que acordar. chegou-me na mão uma folha de papel em xerox, onde tinham muitos poemas. eu estava distraída, nada me apetecia, e de repente ouvi uma voz de algum colega lendo, lendo um poema que seria, eu só saberia depois, do meu poeta preferido, junto com drummond.

eu não entendia nada
eu achava lindíssimo

eu morava ao lado de uma livraria e naquela época existiam dois livros dele em catálogo nacional. comprei no mesmo dia. eu lia e não entendia nada, mas eu não parava de ler. de repente comecei a ler em voz alta. eu entendi então que a voz do poema é a voz da respiração. eu lia para os meus amigos que diziam que aquilo tudo, que era nada, que nada daquilo fazia sentido. eu mostrava como em voz alta fazia sentido sim, e o que importa o sentido de frente ao estremecimento? papoulas importam mais do que razões. e fico contente de ver tanta gente falando dele hoje nesta rede social. muito antes disso, mostrei-o pra toda gente que pude.

quando eu o li, eu escrevia poemas já, mas não eram os meus poemas não. herberto helder atravessou minha dicção pelo começo, e isso pode parecer esnobe para quem não me conhece, ou não gosta do que escrevo, mas que se lixe toda a paúra sórdida: se hoje meus versos têm alguma respiração eu, sinceramente, devoto toda ela as minhas leituras do herberto. pouso tudo que escrevo nos pés daquele chão.

se fui morar em portugal, cinco anos depois, muito foi pelo fascínio que a poesia do herberto me causa. chegando lá percebi que muito do que eu achava que era estilo era só o português de lá, mesmo. mas isso só me fez aprofundar ainda mais a minha admiração, porque o que é se não um poeta do que um atravessamento, um meio, garganta entre estrelas?

em lisboa ouvi muitas histórias sinceras sobre o herberto, de amigos dele próximos e nunca vou contar as mais especiais para ninguém. são coisas dele. e nunca tive vontade de vê-lo pessoalmente, pois seria isso como um machado atravessando a minha cabeça.

mas, no fim do ano, junto com nossas frontes editoriais, escrevi uma carta pra ele. enviamos também alguns livros. sei que ele recebeu, sei também que ele leu. e ainda bem. não que isso fizesse diferença alguma para ele, mas era um modo de pousar algumas vênias da minha dedicação. a carta que escrevi começou durante um efeito do chá lucidíssimo de amor, e eu lembro que eu o chamava de príncipe durante a carta e dizia que ele não seria um rei (embora fosse muitos), já que ele era aquele sempre jovem demais, intenso e humilde demais, aquele que há de demorar mil anos para envelhecer. quem que se apossa do poder no mesmo gesto que o recusa, aquele que nunca se curva e está perante a tudo.

no fundo, acho que eu imaginava que ele sempre estaria a rejuvenescer.
embora eu ainda não o entenda, também não entendo a morte.
e, em certo sentido, isto tudo é certo: ambos agora estão juntos, e isso só pode, mesmo, ajudar a viver com tudo que a gente não entende, que é coisa, aliás, que a poesia faz o tempo todo: lidar com o desconhecido e nele dormir, terrífico e puro, devastador e calmante.

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