quarta-feira, 16 de maio de 2018

fogo cruzado

Queria escrever com ódio o teu desaparecimento
erguer fúrias e avanços como fazem
a lava, os tsunamis e os delirantes.
No entanto mandei outro e-mail
falando do vermelho dos pássaros do Índico
como no jazz o drible da constância é a própria duração
de umas gotas de chuva na nuca
região fadada à incorporação de entidades
às tensões musculares, aos arrepios
à necessidade da cabeça se curvar
coisas talvez que te lembrem na vida
do que gostas é tudo movimento
e é importante que tu não desapareças de vez.
Ter um anzol, um ponto de regresso, farol
esquecer que, no fundo, os suicidas têm sempre razão.
Quando você foi visto há 150 quilômetros de casa
rumo à Moldávia, Botswana, Brasil
ou qualquer um desses lugares que só existem nas aventuras
dos teus livros lidos desde menino
percorrendo a eletricidade do teu corpo
— disseram os que te viram —
cacos de vidro, arames retorcidos no lugar das ideias
uma grande incapacidade de ser insensível
somada ao egoísmo que todos temos
que tornou argamassa o horizonte?
Antolhos é o nome do acessório de tapar a visão
dos animais a carregar fardos maiores do que eles.
Ou qualquer coisa assim na tua face
os 150 corpos mutilados
mortos estampados nas capas dos jornais
eu espero que você não tenha visto
no longo caminho pra longe de si
as notícias dos últimos dias.
tem me acontecido o que vi acontecer
escrever cada vez menos 
até me esqueci que poderia — e deveria, quiçá, até —
recorrer a esse blogue meu primeiro finalmente terminal
local de exercício vital
aqui eu posso respirar como se ninguém
estivesse vendo
posso driblar o verso posso aquecer meus dedos
na digitação sinuosa
tremiliquenta

quem sabe depois de uma duas ou três
quatro cinco frases demoradamente
tentadas um verso apareça
num tentáculo me afague e esmagando
a jugular para cima da clavícula
arranque um tanto esse sufoco
serviremos ao jantar um arenque ao molho de silêncio

como sempre tenho pensado em pessoas mortas
o espelho é um latifúndio de dúvidas
voltei a procurar alguém com quem não falo
hoje faz anos a primeira amiga com quem rompi

sinto saudades
não daqueles com quem rompi
— do rompimento talvez a única memória que me falte é a do útero —
falta mesmo de escrever daquele modo que sei
está acontecendo está perdidamente certo
fazê-lo

estou desconfigurada como quem tivesse acelerado
até outra galáxia e lá chegada
não era uma galáxia
mas algo antes da galáxia

mesmo isto, mesmo aqui
onde só fui livre e intranquila
conforme desejasse
ou mesmo simulasse
talvez até recriasse

tenho mais dúvidas que opiniões
nunca estive tão próxima da verdade
eu nunca te disse, mas agora saiba
a verdade nunca permanece
assim como as galáxias
as canções e as palavras


 

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