quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

via carolina, via gustavo: o futuro:

Para compreender o que significa a palavra futuro, é preciso antes saber o que significa uma outra palavra, a qual não estamos mais habituados a utilizar, ou ainda, que estamos habituados a usar apenas na esfera religiosa: a palavra fé. Sem fé ou crença, não é possível futuro. Isto é, há futuro somente se podemos esperar ou crer em algo. Mas, o que é a fé? David Flusser, um grande estudioso de ciências da religião, e ainda há uma disciplina com esse estranho nome, um dia estava trabalhando sobre a palavra pistis, que é o termo grego que Jesus e os apóstolos usavam para fé. Naquele dia, estava passeando e, por acaso, encontrava-se numa praça em Atenas. Num determinado momento, olhando para cima, viu escrito em grandes letras à sua frente Trapeza tés Pistéos. Surpreendido pela coincidência – a palavra pistis – observou com mais atenção. Depois de alguns segundos se deu conta de que se encontrava simplesmente diante de um banco. Trapeza tés Pistéos significa em grego “banco de crédito”. Foi uma espécie de iluminação. Eis, finalmente, o que significava a palavra pistis, que há meses estava tentando compreender. Pistis, fé, é simplesmente o crédito de que gozamos junto a deus e de que a palavra de deus goza em nós a partir do momento em que nela cremos. Por isso Paulo pode dizer, numa famosíssima definição, que a fé é “substância de coisas esperadas”. A fé é o que dá realidade ao que ainda não existe, mas na em que cremos e temos fé, porque nela colocamos em jogo o nosso crédito, a nossa palavra. Algo como um futuro existe apenas na medida em que a nossa fé consegue dar substância, isto é, realidade, às nossas esperanças. Mas a nossa, sabe-se, é uma época de escassa fé. Ou, como dizia Nicolà Chiaromonte, uma época de má-fé; isto é, de fé mantida à força e sem convicção. Portanto, uma época sem futuro e sem esperanças (ou, de futuros vazios e de falsas esperanças). Mas nesta época, muito velha para crer verdadeiramente em algo e muito esperta para ser verdadeiramente desesperada como deveria, o que se faz do nosso crédito? O que se faz do nosso futuro? Porque, parece-me, se se observa bem, há ainda uma esfera que gira inteiramente ao redor do tema do crédito. Uma esfera que englobou toda a nossa pistis, toda a nossa fé. Esta esfera é o dinheiro e o banco, a Trapeza tés Pistéos, é o seu templo. Vocês sabem que o dinheiro é apenas um crédito. Em todas as notas, na esterlina, no dólar, curiosamente não no euro (isto deveríamos deixar sob suspeita), vem escrito que o banco central promete garantir aquele crédito. Está escrito: “o banco pagará ao portador” – libra esterlina, ou dólar, mesmo se agora não há mais o padrão ouro e se a conversão ao dólar não existe mais. Vocês sabem também que a assim chamada “crise” que estamos atravessando – e espero que sejam bastante inteligentes para suspeitar de que o que se chama crise não é algo provisório, mas o modo normal no qual funciona o capitalismo do nosso tempo – começou com uma série desconsiderada de operações sobre o crédito, sobre créditos que vinham descontados e revendidos dezenas de vezes antes de poderem ser realizados. Isso significa, em outras palavras, que o capitalismo financeiro e os bancos, que são seu órgão principal, funcionam jogando sobre o crédito, isto é, sobre a fé dos homens. Isso também significa que a hipótese de Walter Benjamin, para mim uma belíssima hipótese, segundo a qual o capitalismo é, na verdade, uma religião, a mais feroz e implacável religião que já existiu porque não conhece redenção nem dia de festa, deve ser tomada literalmente. O banco tomou o lugar da igreja e dos seus padres, e, governando o crédito, manipula e gerencia a fé – a escassa e incerta crença que o nosso tempo tem ainda em si mesmo. E o faz do modo mais irresponsável e sem escrúpulos, procurando lucrar dinheiro da crença e da esperança dos seres humanos, estabelecendo o crédito que cada pessoa pode gozar e o preço que deve pagar por isso. Hoje estabelecendo e avaliando até mesmo o crédito dos estados que cederam, não se sabe o porquê, a sua soberania. Desse modo, governando o crédito, governa não somente o mundo, mas também o futuro dos homens, este que a crise torna sempre mais curto e a termo. E se hoje a política não parece mais possível, isso acontece, de fato, porque o poder financeiro sequestrou toda fé e todo o futuro, todo o tempo e todas as esperas. Enquanto durar essa situação, enquanto a nossa sociedade, que se crê laica, permanecer servindo a mais obscura e irracional das religiões, eu os aconselho a retomar o seu crédito e o seu futuro das mãos destes sombrios, desacreditados, pseudo-sacerdotes, banqueiros, de uma parte, e dos funcionários das várias agências de rating, de moldings, de Standard & Poor’s, ou qualquer outra denominação que tenham. E, talvez, a primeira coisa a se fazer é parar de olhar tanto ou apenas para o futuro, como eles exortam a fazer, para, ao contrário, voltar o olhar para o passado. Somente compreendendo o que aconteceu, sobretudo procurando compreender como e por que pôde acontecer, talvez, poderão conseguir liberar-se dessa situação. Não a futurologia, mas a arqueologia é a única via de acesso ao presente.

Intervenção de Giorgio Agamben no programa "Chiodo Fisso" da emissora de rádio "Rai 3" no último dia 25/01/2012. (Link para arquivo de áudio original: http://www.radio.rai.it/podcast/A42410486.mp3)

Transcrição e tradução para o português: Vinícius Nicastro Honesko.

[retirei deste blogue aqui: flanagens]

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