não posso deixar essa ilha sem escrever sobre o Fumaça.
filho de Pimenta, irmão de mesma barriga do Veneno, todo mundo acha que ele é muito mais velho (e mais bonzinho) do que o irmão. mas esse talvez não seja o maior equívoco de interpretação na sua história. este quem cometeu fui eu.
quando conheci o Fumaça em março eu achei que ele era mais um cão desses honestos, que não ligam de ficarem gordos e bobos, afinal nada nada nada é mais interessante no planeta terra do que comida. o fato de que ele exalava de maneira, digamos, tão forte, devia ser mesmo um resultado dele não fazer distinção entre os comestíveis, preferindo, sem dúvida, as proteínas e as gorduras.
como ele não tinha dos cheiros mais delicados dessa localidade, em março eu evitei tocar muito nele, preferindo as festinhas de presentes com comida mesmo. eu era hóspede, ele percebe a diferença, fez-se aquele limite entre nós.
quando nós voltamos em maio, percebi logo que o mais imprevisto, com a sua preguiça e gosto por ser ele mesmo, era muito mais ele do que o Veneno, que só tem cara de Cérbero, mas é o mais fiel (e dependente) cão do planeta. porém, verdade seja dita, se por um lado é o Fumaça que mata os saruês e ratazanas, que passam pelo seu caminho; e que morre de vontade de um dia conseguir pegar o Gleice de jeito; também foi o Fumaça quem primeiro acolheu e brincou com os pequenos cachorrinhos, que são órfãos, aliás.
mas essas percepções não foram suficientes pra que eu me aproximasse do Fumaça. e nem mesmo a insistência dos seus olhares e do ato quase reflexo da sua pata de unhas duras se levantando e batendo na coxa da gente, como quem diz ATENÇÃO EU! nem assim eu dei pro Fumaça aquilo tudo que ele merece. biscoitos, carinhos leves na orelha, pedaços da gordura da carne, cabeças assadas de peixe, sim, mas ainda não aquele abraço em que a gente vive governado.
acontece que o Fumaça tem um tipo de sarna que é de nascença, que o filhote pega da mãe. e essa sarna apareceu pequena, na pata dele, tão logo os donos dele o deixaram pra gente cuidar. eu tinha em mãos um sabonete com enxofre, e um spray antiséptico, com a instrução de aplicá-los durante três dias e tudo ok.
com que custo! eu tirava o Fumaça da cama dele, onde ele é capaz até de comer os restos de alguma coisa sem nem virar de lado. o Fumaça e a cama dele tem um velcro tão resistente, com seus muitos quilos e a força gravitacional do planeta, que eu só conseguia depois de muitas tentativas fazer com que ele se levantasse e fosse até a árvore onde eu o amarrava ao lado da mangueira do jardim. e como, afinal, se fosse comigo, que um desconhecido me arrancasse do meu conforto e me levasse pra onde eu não gosto, como eu mesma reagiria agressivamente, eu não tinha confiança na amizade daquele animal. apliquei os três dias e ok, pensei "passou", e deixei estar. eu, que era uma ignorante em termos de sarna.
menos de um mês depois, Carlinhos passou aqui, o Fumaça fez um carinho nele, virou o pescoço pra cima, até que Carlinhos disse "vixi! ele tá cheio de sarna!". era verdade: de tanto coçar a pata, todo o focinho dele, nas laterais e por baixo, e também logo embaixo do nariz, estavam cobertos de sarna e a pata do lado da primeira pata com sarna, também estava contaminada. eu não tinha reparado porque não sabia que sarna era uma coisa rosa. rosa não era pra ser inofensivo? cada engano nos passam as cores...
e então não tinha mais jeito, a gente ia ter que se aproximar. não dava pra seguir o conhecimento do Carlinhos, de que aqui matam sarna de cachorro com uma mistura de pólvora e suco de limão, que mata tanto na hora imediata que a boca do cão precisa ser amarrada, se não ele sai mordendo tudo que estiver pela frente.
meu pai estava aqui e me ensinou que a sarna é um ácaro, e que essas formas inferiores de vida morrem sufocadas com óleo, coisa que eu já sabia que funcionava com carrapatos. pesquisei na internet e descobri que melhor ainda se fosse morno. comecei a aplicar óleo no Fumaça, e o Fumaça gordo como é, vocês podem imaginar, o Fumaça adorou o óleo. adorou tanto, lambia tanto, que não dava pra saber se os ácaros tinham se sufocado ou não. e o Fumaça contente todo lambuzado, a areia prendendo nele, que adora uma boa porcaria & ele lambendo o óleo e a areia, uma maravilha!
e a sarna lá. aumentando. não tardou apareceram feridas abertas, cheias de sangue. quanto mais feridas mais culpada eu ia me sentindo, e ficava concentrada em não deixar aquilo crescer. limpava com sabão, passava o spray, e depois o óleo morno também. até aquele momento eu também não sabia que o tipo de sarna dele não passa nem pra outros cães, muito menos pra gente. eu imaginava com terror que todos os cães da casa iam ser comidos por aqueles ácaros, e então a visão do horror virou uma questão de espécie contra espécie: aí, humanidade, a guerra contra os ácaros a gente luta, a gente luta pra vencer?
como pessoa do nosso tempo que sou, procurei no google "remédios caseiros contra sarna": óleo + pó de enxofre.
como pessoa neta de pai de santo que sou, descobri uma planta cujo sumo apertado, mata pulgas, carrapatos e sarna. aqui na ilha ela se chama corana, mas as coranas que aparecem no google não são a mesma.
então, resolvi vencer, como 2+2+2+2+2 devem dar n'algum lugar: durante uns 10 dias intercalei óleo de copaíba, óleo de mamona, sabonete de enxofre, spray antiséptico, pedaços de babosa, sumo de corana, aplicações esporádicas de pó de enxofre com óleo de soja... e, pra ganhar, foi importante perder: perdi o nojo que eu tinha das feridas, perdi o medo que eu tinha que ele me mordesse. depois de uns dias eu mexia dentro da boca dele, com a cara há 2cm dos dentões dele e ele, por mais que não gostasse, ficava ali presente em confiança e segurança. eu nem me lembrava mais do medo.
sinceramente, foi tanta coisa, que não sei o que foi que o curou.
provavelmente foi um passeio, quando ele já estava quase bom. quando chegamos na praia de Bainema, a maré estava muito baixa, mas lá as ondas se mantém suficientes pra que sempre haja mar. o Fumaça estava felicíssimo de estarmos no sol, juntos e foi me puxando pra dentro do mar. andamos por uns quilômetros com a água nos meus joelhos, ou seja, cobrindo o peito dele.
todas as vezes que eu tentava voltar pra areia ele não deixava. entendi e respeitei que o remédio dele era não só o sal, o iodo, a água, a memória do mundo, o mar, como a própria felicidade com que ele me olhava em retribuição. naquele dia o Fumaça, correndo em direção ao mar, e me puxando pela coleira e olhando pra trás, como quem diz, "confia", o Fumaça me deu um fulminante olhar de amor e gratidão, que sem exagero, eu juro que nunca mais vou me esquecer.
é isso: Fumaça me ensinou o antigo e vivo óbvio: que o amor é, muitas vezes, uma sarna. e nela se descobre. sarna que vale cada um dos cuidados que a gente tem.
filho de Pimenta, irmão de mesma barriga do Veneno, todo mundo acha que ele é muito mais velho (e mais bonzinho) do que o irmão. mas esse talvez não seja o maior equívoco de interpretação na sua história. este quem cometeu fui eu.
quando conheci o Fumaça em março eu achei que ele era mais um cão desses honestos, que não ligam de ficarem gordos e bobos, afinal nada nada nada é mais interessante no planeta terra do que comida. o fato de que ele exalava de maneira, digamos, tão forte, devia ser mesmo um resultado dele não fazer distinção entre os comestíveis, preferindo, sem dúvida, as proteínas e as gorduras.
como ele não tinha dos cheiros mais delicados dessa localidade, em março eu evitei tocar muito nele, preferindo as festinhas de presentes com comida mesmo. eu era hóspede, ele percebe a diferença, fez-se aquele limite entre nós.
quando nós voltamos em maio, percebi logo que o mais imprevisto, com a sua preguiça e gosto por ser ele mesmo, era muito mais ele do que o Veneno, que só tem cara de Cérbero, mas é o mais fiel (e dependente) cão do planeta. porém, verdade seja dita, se por um lado é o Fumaça que mata os saruês e ratazanas, que passam pelo seu caminho; e que morre de vontade de um dia conseguir pegar o Gleice de jeito; também foi o Fumaça quem primeiro acolheu e brincou com os pequenos cachorrinhos, que são órfãos, aliás.
mas essas percepções não foram suficientes pra que eu me aproximasse do Fumaça. e nem mesmo a insistência dos seus olhares e do ato quase reflexo da sua pata de unhas duras se levantando e batendo na coxa da gente, como quem diz ATENÇÃO EU! nem assim eu dei pro Fumaça aquilo tudo que ele merece. biscoitos, carinhos leves na orelha, pedaços da gordura da carne, cabeças assadas de peixe, sim, mas ainda não aquele abraço em que a gente vive governado.
acontece que o Fumaça tem um tipo de sarna que é de nascença, que o filhote pega da mãe. e essa sarna apareceu pequena, na pata dele, tão logo os donos dele o deixaram pra gente cuidar. eu tinha em mãos um sabonete com enxofre, e um spray antiséptico, com a instrução de aplicá-los durante três dias e tudo ok.
com que custo! eu tirava o Fumaça da cama dele, onde ele é capaz até de comer os restos de alguma coisa sem nem virar de lado. o Fumaça e a cama dele tem um velcro tão resistente, com seus muitos quilos e a força gravitacional do planeta, que eu só conseguia depois de muitas tentativas fazer com que ele se levantasse e fosse até a árvore onde eu o amarrava ao lado da mangueira do jardim. e como, afinal, se fosse comigo, que um desconhecido me arrancasse do meu conforto e me levasse pra onde eu não gosto, como eu mesma reagiria agressivamente, eu não tinha confiança na amizade daquele animal. apliquei os três dias e ok, pensei "passou", e deixei estar. eu, que era uma ignorante em termos de sarna.
menos de um mês depois, Carlinhos passou aqui, o Fumaça fez um carinho nele, virou o pescoço pra cima, até que Carlinhos disse "vixi! ele tá cheio de sarna!". era verdade: de tanto coçar a pata, todo o focinho dele, nas laterais e por baixo, e também logo embaixo do nariz, estavam cobertos de sarna e a pata do lado da primeira pata com sarna, também estava contaminada. eu não tinha reparado porque não sabia que sarna era uma coisa rosa. rosa não era pra ser inofensivo? cada engano nos passam as cores...
e então não tinha mais jeito, a gente ia ter que se aproximar. não dava pra seguir o conhecimento do Carlinhos, de que aqui matam sarna de cachorro com uma mistura de pólvora e suco de limão, que mata tanto na hora imediata que a boca do cão precisa ser amarrada, se não ele sai mordendo tudo que estiver pela frente.
meu pai estava aqui e me ensinou que a sarna é um ácaro, e que essas formas inferiores de vida morrem sufocadas com óleo, coisa que eu já sabia que funcionava com carrapatos. pesquisei na internet e descobri que melhor ainda se fosse morno. comecei a aplicar óleo no Fumaça, e o Fumaça gordo como é, vocês podem imaginar, o Fumaça adorou o óleo. adorou tanto, lambia tanto, que não dava pra saber se os ácaros tinham se sufocado ou não. e o Fumaça contente todo lambuzado, a areia prendendo nele, que adora uma boa porcaria & ele lambendo o óleo e a areia, uma maravilha!
e a sarna lá. aumentando. não tardou apareceram feridas abertas, cheias de sangue. quanto mais feridas mais culpada eu ia me sentindo, e ficava concentrada em não deixar aquilo crescer. limpava com sabão, passava o spray, e depois o óleo morno também. até aquele momento eu também não sabia que o tipo de sarna dele não passa nem pra outros cães, muito menos pra gente. eu imaginava com terror que todos os cães da casa iam ser comidos por aqueles ácaros, e então a visão do horror virou uma questão de espécie contra espécie: aí, humanidade, a guerra contra os ácaros a gente luta, a gente luta pra vencer?
como pessoa do nosso tempo que sou, procurei no google "remédios caseiros contra sarna": óleo + pó de enxofre.
como pessoa neta de pai de santo que sou, descobri uma planta cujo sumo apertado, mata pulgas, carrapatos e sarna. aqui na ilha ela se chama corana, mas as coranas que aparecem no google não são a mesma.
então, resolvi vencer, como 2+2+2+2+2 devem dar n'algum lugar: durante uns 10 dias intercalei óleo de copaíba, óleo de mamona, sabonete de enxofre, spray antiséptico, pedaços de babosa, sumo de corana, aplicações esporádicas de pó de enxofre com óleo de soja... e, pra ganhar, foi importante perder: perdi o nojo que eu tinha das feridas, perdi o medo que eu tinha que ele me mordesse. depois de uns dias eu mexia dentro da boca dele, com a cara há 2cm dos dentões dele e ele, por mais que não gostasse, ficava ali presente em confiança e segurança. eu nem me lembrava mais do medo.
sinceramente, foi tanta coisa, que não sei o que foi que o curou.
provavelmente foi um passeio, quando ele já estava quase bom. quando chegamos na praia de Bainema, a maré estava muito baixa, mas lá as ondas se mantém suficientes pra que sempre haja mar. o Fumaça estava felicíssimo de estarmos no sol, juntos e foi me puxando pra dentro do mar. andamos por uns quilômetros com a água nos meus joelhos, ou seja, cobrindo o peito dele.
todas as vezes que eu tentava voltar pra areia ele não deixava. entendi e respeitei que o remédio dele era não só o sal, o iodo, a água, a memória do mundo, o mar, como a própria felicidade com que ele me olhava em retribuição. naquele dia o Fumaça, correndo em direção ao mar, e me puxando pela coleira e olhando pra trás, como quem diz, "confia", o Fumaça me deu um fulminante olhar de amor e gratidão, que sem exagero, eu juro que nunca mais vou me esquecer.
é isso: Fumaça me ensinou o antigo e vivo óbvio: que o amor é, muitas vezes, uma sarna. e nela se descobre. sarna que vale cada um dos cuidados que a gente tem.
Um comentário:
Menina, que relato delicioso de se ler! Estava fuçando o Google em busca do uso do óleo de copaíba contra pulgas e encontrei esse belo texto. Parabéns por toda a simplicidade encantadora nas suas palavras! Abraços em você e no Fumaça!
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