SÉCULO
Meu século, besta minha, quem
te olhará nas pupilas duras,
quem soldará com o próprio sangue
as vértebras de duas centúrias?
O sangue construtor irradia
da garganta das coisas da terra,
no dealbar de um novo dia
só o parasita é que treme.
Todo o ser, no agarrar da vida,
carrega com a espinha do dorso,
e brinca com a coluna, brinca
abrupta e invisível a onda.
Terra nova, século recém-nado,
cartilagem tenra de menino -
como cordeiro, é de novo imolado
o osso do crânio, a testa da vida.
Para ao novo mundo dar princípio,
para arrancar o século dos ferros,
há que atar, com a flauta, os dias
p'leos enodoados cotovelos.
O século é que balança a onda
ao ritmo da humana desdita,
entre as ervas, ao compasso de ouro
do século a víbora respira.
Incham ainda os pâmpanos na vinha
e a vide rebentará de verde,
mas será quebrada tua espinha,
meu século misérrimo e belo!
E com um sorriso sem sentido,
olhas, crue e débil, para trás,
como animal outrora flexível
para as pegadas dos próprios pés.
O sangue construtor ainda jorra
das coisas da terra; em ressacas
de peixe quente vem dar à costa
a tépida cartilagem dos mares.
E da rede alta das aves, da rocha
do céu, húmida e azul,
se verte, se verte a indiferença
sobre a tua ferida mortal.
1922
[Óssip Mandelstam, em tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra]
quinta-feira, 8 de setembro de 2011
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