outubro de 2012, fui de madrugada ao banheiro branco da casa que morávamos em Lisboa e meio dormindo vi um cérbero azul luminoso ao meu lado. luminoso de escuro. era de pedra e era transparente, brilhava & era discreto. uma fera, uma carranca, era um cão na entrada de um palácio, só na manhã seguinte quando abri a internet eu soube que Saturno havia mudado de signo. Saturno tinha entrado em escorpião naquela madrugada.
novembro vou a uma cerimônia de ayahuasca e danço com as mãos. cerzindo meus órgãos a minha mão é a minha mão mas eu de imediato sei que esses são gestos que sobraram do corpo do meu avô no meu. uma experiência dele atravessou uma geração e de repente tenho acesso a ela.
resolvo escrever um romance que irá se chamar "a história do meu avô". vejo a história inteira numa noite. quando a tento escrever não consigo.
janeiro de 2013 defendo meu mestrado. viajamos para a Bahia e eu escrevo um ensaio sobre "herança".
algures entre março e abril um xamã canta para mim o seu/meu ícaro. acho que nada está acontecendo. aparece um iceberg na minha visão, um iceberg entra no meu horizonte. gigantesco. eu tento atingir com o olhar o seu topo e demoro a conseguir focar o alto. quando alcanço do alto abre-se uma labareda de fogo nos céus & que como uma lâmina atravessa o topo do iceberg. a língua de fogo que vem do céu abre o gelo em dois. o iceberg derrete pelo meio.
abril de 2013 lanço o "poemas do destino do mar" em Lisboa.
fico muito doente no início de maio. sigo um conselho do meu irmão ariano e tomo um chá de alho com limão pra botar pra fora. boto tão pra fora que minha cabeça arrebenta de dor, meu corpo de febre, e eu tenho uma alucinação de que estou com a cara enterrada num cemitério onde estão enterrados todos os meus antepassados. minha cabeça dói porque tem os ossos dos meus antepassados.
não sei se é gripe ou alergia ao pólen mas o que estou não acaba. passam dias e nada resolve, vou numa cerimônia de ayahuasca e continuo resolvida que vou botar aquilo pra fora. não percebo que fico fazendo esse gesto de vomitar logo depois de ter pensado no que seria a natureza do "eu". o sol estava no signo de gêmeos e eu vomitei, sem perceber, um pedaço da minha identidade.
dias e dias e mais dias e mais dias e mais dias sem conseguir fazer nada. Saturno conjunto a conjunção de Marte e Plutão do meu mapa natal. só consigo fumar maconha e não fazer nada com isso. não escrevo, não penso, sinto medo e não sei nem que eu preciso de ajuda. sinto como se os traços do meu rosto estivessem dez centímetros descolados da face, como se o meu rosto me pertencesse mas estivesse mais longe, talvez eu tenha deixado de ser titereira das minhas expressões. mas eu não sabia descrever nada na altura. minha sensibilidade tinha desaparecido.
lanço meu livro no Porto. num almoço com uns amigos, um rapaz cozinheiro tradutor de Victor Hugo e afilhado de uma mãe de santo da cidade de Mariana (MG) me recomenda chá de flor de sabugueiro com tomilho. em cinco dias tomando fico bem. axé!
início de junho vou a Barcelona ler meus poemas. aquela que nasceu da flor me leva pra uma cerimônia no campo. o curandero conversa comigo antes, me olha e diz "o que acontece? você é valente mas não está?", eu digo a ele que é verdade, falo com uma clareza vindo do meu mais fundo de mim que eu nem sabia que estava pensando. digo pra ele que preciso de pouco. dentro de um tipi com uma roda de fogo no meio eu percebo que a minha face está levantada do meu rosto. percebo que estou fora de mim mesma quando olho na palma da minha mão e vejo um bosque escuro. resolvo que só sairei quando o fogo tiver purificado as minhas mãos. toda a minha energia vem do coração. puxo, literalmente, com gestos voltados para cima do meu corpo deitado, puxo aquela vinda de mim mesma até o lugar onde eu sou eu.
no dia seguinte escrevo para o meu psicanalista contando um sonho que tive meses antes e que falava de inércia e medo de crescer. para a xamã que cuida de mim escrevo falando que um pedaço de mim estava fora de mim. ela fica atentamente preocupada e me diz que da próxima vez tenho que ir duas vezes seguidas.
começo a ir duas vezes seguidas, marco para dali poucos dias. na cerimônia o seu marido xamã quando canta seu/meu ícaro para mim vomita enlouquecidamente. no dia seguinte ele me faz entender em francês que retirou um véu de cima de mim e que ao abrir viu uma fila de antepassados querendo falar comigo e que quanto a isso ele não podia fazer nada: só eu poderia saber o que tenho que lidar com eles.
percebo na manhã seguinte que passei meses usando como colar um amuleto do museu de etnografia português, de xisto, quando procuro na caixa de colares encontro a embalagem com a informação "paleolítico // amuleto de conexão com ancestrais //". paro imediatamente de usá-lo.
note-se: em momento algum desta narrativa eu entrei em pânico.
continuo tentando escrever "A história do meu avô".
vamos ao Gêres no fim de julho. início de agosto, voltando para Lisboa, penso em romper com tudo que tenho mantido em silêncio. no dia que a retrogradação de Saturno acaba e ele estaciona no grau oposto da minha lua em Touro tudo que pressurizei é dito: é chegado o momento da crise: é pegar ou largar. ele agarra. dias depois me pede em casamento numa manhã em que estou no sofá com cólicas menstruais e ainda nem tomei café. aceito.
faço a primeira purga de tabaco da minha vida.
faço a segunda purga de tabaco da minha vida.
na terceira é outubro e vejo no fundo do balde a palavra NÃO. foi-se embora qualquer dúvida. no dia 19 nos casamos. no fim do mês lanço "O túnel e o acordeom".
ouço "Alucinação" do Belchior o tempo todo.
novembro Saturno que atinge o grau 14 de Escorpião & no dia que Saturno encontra o meu Saturno dá um beijo de língua em si mesmo e eu escrevo o primeiro poema de "Seiva, veneno ou fruto // A casa dos nietzscheanos" — : "Voltar a estudar, não sei // mais compor meus poemas. Que alegria! Pela estrada voltar a fumar (....)". saúdo o retorno! sinto medo! o tempo todo! e me sinto a estrutura do meu mundo nos meus ombros.
tento o ano inteiro escrever "A história do meu avô".
passam-se meses na logística da mudança. invento a playlist "exorcizar tristeza". danço-a todos os dias. meu computador quebra uns dias antes da mudança, perco meu HD e tudo dos últimos 8 meses. em janeiro chegamos no Brasil. faço aniversário com Marte em quadratura com o meu sol até então não sei o que isso significa.
março vamos para a Bahia. Netuno conjunto à lilith. fico surda. fico 20 dias surda. sinto medo medo medo medo medo. vejo coisas tendo ler as minhas. acordo dois segundo antes da entrada de alguém na nossa cabana, acordo ele ao meu lado, ele também vê um homem lá fora, eu grito com voz de macho e o ladrão foge. emprestam-nos uma cadela para nos proteger. Domitilia Pelegrina, a cadela, está grávida. uma noite a luz acaba sem previsão de voltar. nessa madrugada a cachorra cai da varanda e quase morre sufocada com a própria coleira. é ele que acorda com o barulho e a vai salvar. no fim da viagem os donos da pousada convidam-nos a voltar para cuidar dos cachorros e das casas enquanto eles estiverem fora. primeiro digo não. só deixo de estar surda ao ir a um pronto socorro em Lençóis onde quase estouram meus tímpanos com éter quente.
a chapada de Diamantina é o lugar mais bonito em que já estive na vida. no fundo, estou cansada.
voltamos para São Paulo. vou beber ayahuasca no sítio. algumas vezes. decidimos ir aceitar a proposta.
em maio Saturno inicia a retrogradação. em maio vamos para a Bahia. Pelegrina morreu poucos dias depois do parto. temos 5 filhotes de cachorro de 10 dias pra cuidar, sem a mãe. temos que amamentá-los de três em três horas, mantê-los quentes mas não juntos, pois juntos eles se mamam uns aos outros e se perfuram e se se perfurarem os bernes tomam conta de tudo. o Coragem quase morre, eu chego a torcer numa noite para que ele morra de tanto que ele agoniza. uma hóspede resolve cuidar dele e consegue salvá-lo com reiiki e a ajuda do namorado farmacêutico & dos antibióticos, claro. salvamos as cadelas, trato a sarna do Fumaça, recebo hóspedes. aprendo o prazer que é simplesmente cuidar das coisas pra que elas fiquem bem vivas.
bebo o chá algumas vezes. acho HAHAH que sei o que estou fazendo metendo uma criança de 4 anos num tiroteio.
fins de julho Saturno retoma o movimento direto.
nalgum lugar do mês ir a Portugal fazer
um retiro. dou um pulo em SP e vou para o Algarve no final de agosto.
passam-se dos dias mais preciosos da minha vida e as noites sinto medo
medo medo medo muito medo. no dia seguinte do fim do retiro o medo
desapareceu e desde então, o medo que mais tenho desde criança, só o vi 4
ou 5 noites em um ano inteiro. passo vinte dias em Lisboa. é calmo, é
bom viver, é tênue. sou também eu planta. lanço a plaquete "A casa dos nietzscheanos" no Porto.
volto
para São Paulo. entre muitas outras coisas começo a ler mapas
astrais profissionalmente. mês que vem faz um ano. a memória aqui fica rarefeita porque é recente e se agita tão íntima que
não quero mais contar em público. além de marcar o evidente de que no último julho minha avó morreu num clarão & ela também tinha esse Saturno. nós? não entramos em pânico, vivemos da estrutura no lodo luminoso. as crises nos ensinam quem somos. descobri muitas coisas, poderia fazer mais sínteses, mas já escrevi, literalmente, demais. mais, talvez, do que eu devesse. na solidão do indivíduo aprendi a linguagem com que se comunicam. mas isso de falar demais é minha turma em Sagitário que eu vou ter a oportunidade de aprender muito bem quem são com a passagem de Saturno em tal signo nos próximos anos.
depois desta passagem de Saturno em Escorpião revelei isso a mim mesma: nada me interessa mais do que a intimidade & justamente por isso nada é de se preservar & usar, mais, ao mesmo tempo & com diferença. meu novo livro não tem um poema sequer que fale só de mim mesma como esse texto. nenhum uso do "tu" ou de "você" como estratégia de enredar emocionalmente um outro. nenhum poema de amor. meu novo livro fala da morte com uma lancinante paixão pela vida que está em tudo para além de mim. e eu quero terminar este livro antes de Saturno entrar em Sagitário daqui 7 dias. conseguirei?
azul luminoso também é o deus hindu de pedra que vi. cheio de compaixão e frieza. te esperarei voltar! daqui 28 anos, espero que eu esteja & continue disposta a entender que o que estrutura dá o rumo.