segunda-feira, 27 de agosto de 2018

o poder do símbolo

não faz muito tempo ele me contou que escolheu me pedir em casamento quando me viu atirando gérberas cor de laranja pela janela do carro em que atravessávamos o Gerês. a proposta de casamento veio semanas depois do acontecido e as gérberas eram para o túmulo do António Variações — eu nunca levei flores pra nenhum outro morto nem parente meu na minha vida — e tinham sido muito difíceis de achar. o amor às vezes também é um troço complicado, tínhamos andado a discutir feito loucos por dias e na busca daquelas gérberas por aldeias várias não foi diferente. quando finalmente achamos uma floricultura era o único buquê que havia disponível e com ele nas mãos eu entrei pra fazer xixi no mosteiro em frente, um daqueles de séculos onde um casamento vulgar de tão luxuoso acontecia e pensei eu hein casar que coisa horrível nunca na minha vida etc etc enfim com os gerânios nas minhas mãos e ele dirigindo nos perdemos muito muitíssimo as placas da estrada e o mapa que tínhamos não coincidiam e as estradas por ali são uma espécie de superfaturação em cadeia de rotundas — a cada três ruas há uma rotunda — ou rotatória como ser diz dos lados deste atlântico. deixando o atlântico de lado e voltando as gérberas eu fiquei tão putíssima da vida de irritada que abri a janela e comecei dramática e friamente lançar flor a flor pela janela. uma a uma, mas não todas, afinal o António não podia ficar sem — e depois disto lá nos perdemos mais um pouco pelas rotundas mas levamos as flores amansados e em paz como convém aos cemitérios. anos depois eu soube que na hora que eu atirava flores pela janela ele pensou "sou um idiota. como fui capaz de fazê-la jogar pela janela as flores que ela mais quis encontrar?".

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