sábado, 8 de setembro de 2018

muitas vezes me lembro da professora que me alfabetizou, e como ela mostrava que as letras já podiam nascer juntas, porque ela me ensinou palavras inteiras — ou foi assim que minha memória juntou — e depois dela me ensinar a escrever "júlia" ela me perguntou: "que palavras você quer escrever agora?". eu logo quis escrever "abelha" e a segunda palavra que eu quis foi "saturno".


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muitas vezes me pego pensando que o futuro é que determina o passado e não o contrário. afinal o futuro de toda repetição é ser presente quando acontece. traços na areia, na madeira, no fogo, o corpo todo marcado como uma nave vai se gastando pelo tempo do que atravessa.


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mais que afeto, eu sentia devoção por essa professora que me mostrou que os sons, ou que os traços podiam juntar com outros traços que transmitiam as coisas que as pessoas diziam umas pras outras e lembro da minha satisfação de sentir o giz nos meus dedinhos grafando na lousa abelha saturno e desenhar em cima uma abelinha e um saturninho com seus anéis maravilhosos que me encantam até o último fio de cabelo. depois ficava com aflição do pó de giz e ia enfiar a mão na terra.


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é curioso conseguir encontrar exatamente no meu corpo onde mora essa sensação de lembrar que aos meus 4 anos de idade poucas coisas me deixavam mais segura do que a professora que me alfabetizou & ter a memória totalmente visual de ler na lousa escrito por mim ABELHA SATURNO — essa sensação mora no meu tórax, como um colete quente apoiado bem no meio do esterno, pegando as omoplatas e sutilmente a nuca, esta região do respirar. deve ser por isso que escrever sempre teve a ver, pra mim, com um liberar de ombros.

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era uma escola hippie graças às graças tinha horta cara de fazenda e nos incentivavam a caçar tigres imaginários por horas e horas. da mesma época eu também me lembro do primeiro menino por quem eu me interessei com olhos específicos e ele tinha a doce habilidade de subir no alto de um pé de manga e ficar lá em cima no último galho que era altíssimo e ninguém na escola era capaz de subir lá além dele. criança eu admirava o nenhum medo dele de cair lá de cima. hoje reflito mesmo o incômodo que ele devia sentir lá embaixo pra ter que tantas vezes se isolar no galho mais alto da mangueira. e o que me impressiona mesmo é que isto, ainda hoje, teria o poder de me encantar.

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