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sexta-feira, 6 de junho de 2014

Coragem



só pudemos saber aqui, que uma das coisas que viemos fazer nesta ilha foi conhecer e tratar do cãozinho aí. Coragem, seu nome é o que ele possui.

a mãe desses filhotes morreu uns dias após o parto, e a pele deles era tão fina, e o trópico tão intenso, que eles foram atacados por bicheiras, vermes comedores de carnes vivas.

quando aqui chegamos, disso eles já estavam curados. mas dois deles tinham desenvolvido processos de inflamação a partir dos parasitas que, vejo eu, são uns nojentos.

o cachorro mais debilitado de todos foi o Coragem, que frágil desde o início, anunciado como prestes a morrer foi inúmeras vezes. já ao nascer o Escuro, que trabalha onde estamos, disse que o único macho da ninhada não ia durar mais que poucos dias. Escuro é o sábio de toda ilha, mas até os sábios se enganam. ainda bem.

o cotovelo esquerdo do pequeno inchou de ele não conseguir fazer nada a não ser estar deitado. durante três dias e três noites Coragem ganiu e latiu e rosnou o tempo todo. não comia nada que não fosse lhe dado numa seringa, e como estamos na Bahia, passou alguns dias à base de água de coco. evoé! os frutos e os líquidos.

na mais crítica das noites, dormindo ao pé de mim, depois de ter uma convulsão pela alta febre, a respiração dele chegou a se dar só de cinco em cinco segundos. eu mesma disse "é hoje, ele vai morrer". tive certeza. confesso que até fiz coisa que não se faz, torci pela morte, pois o pequeno cão estava roxo e sofria tanto, tanto...

mas não, amanheceu e Coragem estava vivo, e pedindo por comida. nosso Coragem fintou a morte mil e duas vezes e com a grande imensa suntuosa magnífica e maravilhosa ajuda dos antibióticos que a espécie humana inventou (ou descobriu?) para estarem do nosso lado, o pequenino começou a desinchar. hoje, pela primeira vez, Coragem andou nas quatro patas e abanou o rabinho. ainda está um terço menor do que suas irmãs, mas já sei o que ele me ensinou: todo dia é dia de viver.

vamos lá, Coragem!

quarta-feira, 7 de maio de 2014

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ontem me cometi a violência de ver o vídeo da mulher linchada até a morte no Guarujá, cidade onde, embora longe do lugar onde ela foi assassinada, passei muitas férias.

matarem alguém na porrada tem sido recorrente, acho que nem todos meus amigos portugueses sabem, tem sido recorrente, habitual lincharem pessoas no Brasil de hoje.

hoje. hoje. hoje.

em muitos momentos a história da humanidade é a história do massacre da humanidade e em alguns momentos temos mais consciência disso. não acho trivial a recorrência com que ouço e leio associações do tempo presente ao nazismo, com a idade média, ou à ditadura. vocês acham que nos associar a esses tempos significa o quê? eu só consigo pensar que vivemos tempos sombrios. pelo menos eu, muitas vezes sonho com a guerra, eu que nunca vivi numa. mas não quero ir pela sombra, nem quero deixar que a guerra me pouse nos ombros. nem nos vossos.

mas ela pousa.
olha que pousa.

acho que é preciso pensar.

o que consegui pensar enquanto assistia é que poderia ser qualquer um no lugar dela. outros amigos disseram o mesmo. o deputado Wyllys (que é um sujeito raríssimo nesses tempos, sobretudo por combinar autoridade com alguém a quem se deve respeitar) numa recente colocação lembrou bem que provavelmente não seria qualquer um. seria alguém massacrado pela história da desigualdade social e racial que é o Brasil, alguém massacrado cotidianamente pelos contextos que a história (e a irresponsabilidade política e institucional) produziu e continua a produzir.

se é função política obrigatória lembrar de que as vítimas são vítimas, por outro lado, acho que isso faz muita gente se sentir segura, afinal supõe "a barbárie nunca me alcançará". o sinal primeiro de que ela já chegou não é quando acontecer com o seu vizinho, mas é você viver com tamanha inumanidade no seu coraçãozinho.

lembrei-me também de quando era criança e na escola eu salvava os gatos que algumas crianças tentavam massacrar. elas o faziam por pura crueldade? por diversão? por senso de manada? é o mesmo problema, o problema da banalidade do mal, com o agravante de que seres humanos e adultos seriam pensantes. mas o mal é banal, o mal é qualquer coisa, não é grande coisa, embora seja a pior.

num momento em que tanta estupidez, ignorância, violência e destruição se qualificam como justiça, é um tanto embaraçoso, é quase confuso falar em justiça, não a justiça feita com as próprias mãos, mas a justiça feita pela justiça, a responsabilização dos culpados (diretos e indiretos) pelo assassinato, por exemplo, da mulher que estava guardando na mão uma bíblia com a foto das crianças dela, da mulher que estava saindo da igreja e que tinha transtorno bi-polar, da mulher que foi por um boato (espalhado nesse mesmo facebook em que você almoça) acusada ou confundida com alguém que fazia "magia negra" com crianças hipotéticas e coitadas e que assim merecia ser... massacrada. massacrada com paus e pneus e risos e gritos, massacrada sem nenhuma chance de reação, sem nenhuma hipótese de vida, destruída de um modo banal. morta.

e por que não responsabilizar os responsáveis? a resposta de muita gente será... "a justiça? ela não funciona". resposta mais do que triste de uma lucidez derrotada, esta é uma resposta inviável.
 

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