"Escrevi para fornecer uma forma legível e apaziguadora aos momentos na porta do quarto, no parque, na rua vazia, defronte do rosto aparecido. Escrevi para trás numa espécie de engolfamento memorial. Não consegui nada, foi como continuar no quarto, no jardim, à frente das caras súbitas. Mas conheço agora a existência de uma pergunta inesgotável que se formula, se assim posso dizer, pela objectivação dos arredores evasivos, das alusões, dos sinais remotos.
(...)
Mas este poder, que é um poder mágico, comporta riscos: muitas vezes vira-se o feitiço contra o feiticeiro - uns enlouquecem, outros suicidam-se, há também aqueles que ficam misteriosamente mudos ou estéreis, e aqueles ainda que se põem às voltas a falar, o pior, os mortos sonoros: atiram poeira para cima, estes, seriam mais bonitos crucificados. Ora é precsio intoxicar-se com a paixão do perigo, desenvolver-se a gente dentro dessa paixão: porque o ouro e a prata se escondem em recessos de floresta, fundos de mina, terras depois da água. A paixão é a moral da poesia: arrisquem a cabeça se querem entender; arrisquem sobretudo o nome pessoal, para ouvirem o nome de baptismo como o coroado nome da terra. De sorte que esse tal poder é o da própria paixão: ninguém consegue aventurar-se na poesia coleccionando objectos - estátuas, estatuetas; jóias devem ser jóias vivas, olhos de leoas maternas, insuportáveis coisas que nos contemplam, morre-se de ser assim contemplado. E então é necessária uma nobreza indizível, por exemplo: fixar de frente os olhos maternos, leoninos, e os nossos olhos ficam calcinados - o episódio, conheciam-no os antigos: dizia-se que os deuses cegavam quem os olhasse. Refiro-me a essa nobreza: como se deixássemos de ser nós mesmos, uma espécie de impassibilidade enquanto se vai ficando cego na floresta das leoas."
Herberto, em auto-entrevista, na Inimigo Rumor, n.11.
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