ontem à noite, pela primeira vez, li o poema do Leonardo Fróes que segue abaixo. é maravilhoso demais ter trinta anos e acontecer de novo de ser a primeira vez que leio algo que parece que sempre foi o sentido de tudo, de tudo, no caso, que penso sobre o poema:
O poema
Com esse modo agreste
de usar o vocabulário,
tentando tirar o mofo
do seu emprego diário,
tentando dar às palavras
um valor não-literário,
tentando extrair vida
de um velho dicionário,
aí vai o poema,
e vai sem destinatário,
assim como surgiu,
rangente, seco, dentário
capaz de ferir a pele
por baixo do vestuário,
capaz de fundir num todo
os sentimentos contrários.
Excesso de amor perdido
no território solitário
de um aprendiz comovido,
resto de gritos e urros
num cárcere voluntário
onde me sinto mais livre,
o poema, sendo vário,
é sempre uma coisa minha
de fundo comunitário,
é sempre o desenho breve
de um gesto visionário,
uma esperança constante
de, sempre, ser solidário.
Símbolo tenso e aéreo
de um ébrio noticiário,
rumo incerto construído
com materiais precários,
o poema é sobra e soma
de impasses humanitários,
é dúvida e febre, cerco,
memória de um ser primário,
é o lance mais gratuito
de um jogo desnecessário
que eu disputo com as trevas
por ímpeto hereditário.
Meu tédio, meu desalento,
meu triste dever diário,
as forças de além-do-tempo
sujeitas ao calendário,
minha sede, meu orgulho,
meu desgosto sedentário,
minha mão sempre apontando
para um mundo igualitário,
meus monstros gesticulando
no fundo de um relicário,
meus porres e meus pavores,
meus nervos incendiários,
vai tudo contido nele
em busca de itinerário.
E se acaso esse poema
no seu ritmo arbitrário
toma fôlego e se entranha
nos meandros planetários,
se chega, tal como a brisa
ou som de um campanário,
a pungir dentro do peito
de onde é originário,
se reproduz, como pode,
a forma de um estuário
por onde meus sonhos fluem,
eu, seu modesto operário
—que nunca de um talento
fui o feliz proprietário,
cuja ambição foi só
ser um fiel escriturário
de tudo o que vai passando
no mundo do imaginário—
eu me dou satisfeito
e, fato extraordinário,
me suplanto, me extasio,
me dissolvo libertário
e sou cada vez mais eu
sendo vosso — e ainda mais vário.
- -
do "Língua Franca", de Leonardo Fróes, livro publicado quando o poeta tinha 27 anos.
sábado, 4 de outubro de 2014
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