domingo, 8 de fevereiro de 2015

Dom Quixote de las letras



DOM QUIXOTE DE LAS LETRAS
Leonardo Fróes


Devo estar pertencendo a outro planeta. O do Silêncio. E no entanto essas palavras me mordem — exigem para passar para fora. Escrevo obedecendo a um registro. A fala que me conscientiza já é estranha totalmente à idéia habitual de quem sou.

Dom Quixote de las Letras passava pelas redações e ditongos levando seu calhamaço de urros. Chegava à Editoria dos Ditongos, espiava. Via os moinhos da informação fumegando e não acreditava. Mas erguia, com um urro raivoso, a Sua Pena. Com um urro manso cumprimentava. Ninguém podia imaginar nem eu. Mas é verdade.

Na cabana onde Dom Quixote escrevia havia um coelhinho do mato que vinha o visitar com frequência. Nas grandes noites de Derrota o coelhinho sentava numa pedra defronte. Olhava para ele como um Coelho do Mato pode olhar.

Parece que isso aqui virou máquina. Tem coisas que pode, coisas que não pode, fios invisíveis ligando as grandes pás do moinho. Dom Quixote transgride, provoca, estaciona numa orelha e deita sua falação automática. De repente o espírito do local o possui. Mas de repente também ele retorna à sua e é o coração navegando sobre seu cavalo hipotético. Vê ao longe as bandeiras da proibição trepidando. Desgoverna-se um pouco, mas avança. Sente-se o próprio espelho do Homem com suas lamentáveis esporas que parecem medalhas que parecem ventoinhas malhadas e caldeirões de bronze. Como um Perfeito Cavaleiro Armado, o herói Dom Quixote — de las Letras — volta-se para o glorioso passado e recicla situações quixotescas que ele mesmo, sendo quem é, retira de velhos relicários onde guarda os Bilhetes.

Posiciona-se, p. ex., ante determinados palpites e arrisca sua navegação palavral pela língua terna e cansada. Poderia dizer umas Verdades, mas já é tão tarde, e depois esses grilos, esse choro, é melhor dizer ui! Claro que as Exclamações são permitidas ainda. Como também não é sensato deixar de reconhecer seu Direito. Mas por enquanto, não seria melhor questionar se, sendo ele Dom Quixote, necessitaria ou não de um parceiro? Xanxupança estava consertando uns arreios da Terra do Brasil recém-descoberta quando olhou pelo retrovisor do seu mulo e viu um Guarda. Pronto, pensou em seguida, aí vem rabo!

As Exclamações — ainda — são permitidas. As ponderações, também. As cogitações sobre o futuro, idem. Mas o dado concreto da Pessoa Presente, e era isso que Dom Quixote apontava, estava muitas vezes ausente. O Editor de Ditongos, coitado, ficava aparando os golpes do louco.

Dom Quixote de las Letras passaria naturalmente por louco face a um milhão de comodidades em voga. Não gostava de pentes, por exemplo, nem de ventilador. Gostava de sentir de perto as pessoas, por isso perdia frequentemente os jogos e não assaltava, era um Dom Quixote assustado que escutava corujas, também.

Ou de repente a situação da coruja e calar. Entidade presente numa luminosidade ímpar e tão depressa. Impreciso dizer. Estar. Sentir-se locomover como um urso portátil que se desdobra e — ponderavelmente — não se suicida.

Dom Quixote de las Luchas era também no fundo um gozador e também um grande sofredor e também um dileto e bastardo filho das hesitações e do acaso. Vacilava como qualquer cidadão, investia por necessidades distantes. Era comandado como as coisas são num rodopio de astros corriqueiros que muitos filósofos de antigamente chamaram de aparências do mundo.

Eu sei que é difícil dizer isso, dizia Dom Quixote sem traço, mas você vai concordar comigo que a gente faz confusão. Já era noite. Era hora de acordar e afiar as unhas de novo, porque O Mundo — sua grande namorada — estava completamente maluco(a). As paredes estavam brancas de novo, e exigiam uma pichação caprichada. Era de manhã. Era incrível como o sono passava rápido, e no entanto em camas das totais profundezas, cenas completamente antecipadas como um suspiro contente. Ui, dizia Dom Quixo.

Te quero como qualquer criança. Com a pureza de Xanxupança dormindo e esse momento alem dos sentimentos (mas não sem sentimentos) que é mais ou menos sair de cada um deles como a meia sai do sapato. Naquele tempo de outrora as indumentárias complicadíssimas exigiam grandes malabarismos para se vestir. Usavam-se monumentais espelhos mas a Humanidade era a Mesma.

A consciência crítica sobre a Humanidade e a Mesma não acudia a Dom Quixote como acusação nem defesa. Nem era propriamente uma Consciência Crítica assim com essa importância toda. As coisas doíam, sim, mas até um ponto. Dom Quixote não podia afetar uma sabedoria nenhuma, mas era clássico que ele deitava na sombra, matutando, passando pouco a pouco do seu confuso interior para a serenidade das árvores.

Bonito. A consciência crítica não era nada importante, as árvores não eram nada importantes, nem as vírgulas nem as cataratas, mas para chegar à grande evidência ele era assim desse jeito. Agia muito, por isso errava muito, e gostava de estar cheio de sangue para existir todinho. Assim.

Só o louco pode ser ponderado, dizia Dom Quixote com as folhas, porque ele passa para a vontade do outro. As paredes caem como se fossem de um papelão diáfano ou então de um material cósmico invisível. Podia manejar a Sua Pena y viver esse momento sin compassión, perfeito/imperfeito que navega no astral. Nada. Concreção e dissipação simultâneas. Ondas eventuais e longíssimas que explodem na formação de omoplatas, pessoas completas, tanques de guerra ou de lavar roupa.

Assim, quando tirava sua pesada armadura, Dom Quixote de las Letras chegava à situação quixotesca de espantar um mosquito antes de coçar a nuca e pensar. Sentir que o pensamento aparente é um detergente casual que se dissolve na água, revelando as Coisas. Novas aparências que se dissolvem também, revelando as bruscas encadeações e o sossego. Ui, que momento bonito.

Bonito. Ou então lindo. Papai Goethe pediu que ele parasse um momento. Como alguém, na metade da vida, pára e se divide em laranjas. Em dois companheiros que de repente desaparecem também e em seu local surge uma transparência que é a mistura de uma montanha serena com um vulcão pipocando. Assim. Cheio de sangue, vazio, cheio de algodão, e completamente desmemoriado também. Nuvem, farofa das circunstâncias, bolero e tico-tico.

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