segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

104

hoje meu avô, joão alfredo hansen, faria 104 anos se estivesse vivo. a memória do meu pai o contou tantas vezes, que é sempre como se ele estivesse. vejam, a memória que vocês espalham entre os seus, ela há de vingar, é de se escolher.
meu avô é o homem de gravata na foto dos meus jaguares abaixo, ao pé de uma gameleira, também pode-se ver meu tio avô e o meu pai. o meu avô era mestre de fios na indústria têxtil de americana, no interior do estado de são paulo.
não o conheci.
dizem que quando chegava dia 2 de fevereiro ele dizia: "ah! mas meu aniversário é no dia 8". e quando chegava no dia 8, ele dizia: "ah! mas foi dia 2!". e o interlocutor já sabia, era para rir, que naquele homem a vida escapava na generosidade de fazer aniversário duas vezes. e nunca.
eu hoje conheço astrologia, e não tenho muitas dúvidas de que ele nasceu no dia 2. é o grande trígono das águas que me diz.
ele pescava, e caçava, passava semanas com um amigo, desaparecido no pantanal, e trazia as pescas e caças, e distribuía entre os vizinhos. ficava com muito pouco. vinha pra são paulo todos os meses só pra trocar de carro e às vezes trazia meu pai junto e assim lhe deu para beber refrigerante, pela primeira vez. diz meu pai que tinha gosto de bicarbonato e coçava o nariz. outras vezes meu pai ficava em casa, e nesses dias ganhava sempre um periquito vindo da capital.
já com certa idade, meu avô que lia o mein kampf e detestava o catolicismo, meu avô que tinha sido ateu, tornou-se bruxo, mateiro, pai-de-santo, um xamã, sabe-se lá se eu sei o que foi, exatamente, o meu avô. que sabia curar as pessoas com as plantas, e as curava. meu avô, que deve ter matado gente na *revolução de 32.
um dia hei de escrever sua história como ela deve ser.
por enquanto só conto que na sua vida houve também um episódio daqueles macarrônicos, quer dizer, uma paella não foi assada. conto com pausar: meu avô, bem jovenzinho namorava uma espanhola em são paulo. ele mesmo vivia em limeira, e vinha às vezes até são paulo vê-la. até que foi obrigado, pelo pai da menina, a ficar noivo. que remédio além de o fazer?
na festa de noivado, contava ele, foi se servir de uma sopa de entrada, e percebeu que aquilo era um cozido de muitas carnes gordurosas. sentiu-se enjoado só de olhar. pensou: imagina comer isso durante décadas! argh, quase apagado de tontura, chegou até o alguém mais próximo e disse "vou ali comprar cigarros". e foi! sim. um clichê libertou o meu avô. você também, cuide bem dos clichês, quem sabe um dia eles te libertam.
meu avô era livre.
são raríssimos, os livres.

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