estilhacei três por quatro
meu maior pedaço ficou aqui
as unhas foram lançadas
onde não se via
nada além do mar:
as ondas ruindo
minhas unhas sumindo
a cabeça ruminando:
ensina a ficar
o mar não ensina nada,
minha filha
meus dedos também
carcomidos foram
pela salsugem.
quinta-feira, 29 de janeiro de 2015
o Ateu
ontem o chefe da matilha, o pequeníssimo Ateu, com a trovoada que fazia
meteu-se no meu colo, apavorado e tremia.
me preocupei com o pequeno, que há 12 anos está conosco
sendo, desde que o conheço, Ateu,
o coração do pobrezinho disparado. e a casa em meio a tempestade resistia (uma goteira no telhado, mamãe me lembre de lembrá-la), lá fora as árvores balançavam muito e os trovões aconteciam em simultâneo aos raios. estávamos dentro da nuvem.
o Ateu tremia tremia de coração a mil. até que saltou do meu colo e desceu as escadas. pensei "vai se abrigar embaixo de algum móvel"; até que meia hora depois encontrei
o Ateu audaz
voltando do meio da chuva!
não é todo dia que um ateu se mantém convicto, nem que um ancião vai pro meio do seu medo. e volta intacto.
sequei-o por minutos & ele em júbilo não deixou que ninguém mais se aproximasse do osso que ganhou.
meteu-se no meu colo, apavorado e tremia.
me preocupei com o pequeno, que há 12 anos está conosco
sendo, desde que o conheço, Ateu,
o coração do pobrezinho disparado. e a casa em meio a tempestade resistia (uma goteira no telhado, mamãe me lembre de lembrá-la), lá fora as árvores balançavam muito e os trovões aconteciam em simultâneo aos raios. estávamos dentro da nuvem.
o Ateu tremia tremia de coração a mil. até que saltou do meu colo e desceu as escadas. pensei "vai se abrigar embaixo de algum móvel"; até que meia hora depois encontrei
o Ateu audaz
voltando do meio da chuva!
não é todo dia que um ateu se mantém convicto, nem que um ancião vai pro meio do seu medo. e volta intacto.
sequei-o por minutos & ele em júbilo não deixou que ninguém mais se aproximasse do osso que ganhou.
quarta-feira, 21 de janeiro de 2015
fiquei 11 anos sem tomar um antibiótico. ontem tomei 1.
entrou um caminhão de armaduras sintéticas em cada célula do meu corpo.
nos últimos anos fui me curando com vegetais diversos, chás incluídos, muitos fitoterápicos chineses. e ah! acupuntura.
e ontem tomei 1 dose só de aniquiladores do excesso de corpos estranhos. ah! inflamações q são nossa saída ah q são a nossa pane.
sabe, encontrei na internet q o antibiótico é um "veneno seletivo"
foi ontem quando falei aqui de veneno também estava dentro de um hospital. falei de veneno num sentido moral, mas pensava em veneno num sentido literal.
literal / moral
são questões,
não são?
fiquei anos também sem ir a uma igreja, desde q entrei numa noite de natal na sé de lisboa e me senti tão mal tão mal tão mal tão mal. no domingo também fui numa igreja. todo esse papo e nunca fui a Netuno.
mas em poucos dias fui a uma igreja e a um hospital.
tomei um antibiótico.
às vezes é tão importante a gente não ser a gente mesma.
e pra um corpo q está sempre na esfera de produção de si mesma
pra um corpo q leu em algum lugar "eu sou todo sensações"
e então teve essa sensação de ser todo sensações
pra alguém que se elabora entre as sensações não sintéticas da matéria
a única coisa q reconheço agora se passando no meu corpo é que não-seremos vencidas ainda,
q um amigo não vegetal colou aqui
tal amigo sintético veio ajudar
e ele não queria diálogo.
não se dialoga com o sintético, enfim.
viva a carne. q se viva na carne. e beijos,
entrou um caminhão de armaduras sintéticas em cada célula do meu corpo.
nos últimos anos fui me curando com vegetais diversos, chás incluídos, muitos fitoterápicos chineses. e ah! acupuntura.
e ontem tomei 1 dose só de aniquiladores do excesso de corpos estranhos. ah! inflamações q são nossa saída ah q são a nossa pane.
sabe, encontrei na internet q o antibiótico é um "veneno seletivo"
foi ontem quando falei aqui de veneno também estava dentro de um hospital. falei de veneno num sentido moral, mas pensava em veneno num sentido literal.
literal / moral
são questões,
não são?
fiquei anos também sem ir a uma igreja, desde q entrei numa noite de natal na sé de lisboa e me senti tão mal tão mal tão mal tão mal. no domingo também fui numa igreja. todo esse papo e nunca fui a Netuno.
mas em poucos dias fui a uma igreja e a um hospital.
tomei um antibiótico.
às vezes é tão importante a gente não ser a gente mesma.
e pra um corpo q está sempre na esfera de produção de si mesma
pra um corpo q leu em algum lugar "eu sou todo sensações"
e então teve essa sensação de ser todo sensações
pra alguém que se elabora entre as sensações não sintéticas da matéria
a única coisa q reconheço agora se passando no meu corpo é que não-seremos vencidas ainda,
q um amigo não vegetal colou aqui
tal amigo sintético veio ajudar
e ele não queria diálogo.
não se dialoga com o sintético, enfim.
viva a carne. q se viva na carne. e beijos,
sexta-feira, 16 de janeiro de 2015
Como em dia de festa...
Como em dia de festa, quando o homem do campo
Sai pela manhã para olhar a sementeira, quando
Da noite quente desceram fogos refrescantes
Sem parar, e longe ainda se ouve a portentosa vibração dos ares,
De novo ao leito se acomoda o grande rio,
E o verde da terra se renova
E a chama do céu alegra
A cepa gotejante e no seu brilho
Crescem para o sol tranquilo as árvores do bosque ______
Assim se erguem em tempo propício
Aqueles que nenhum mestre até ao fundo forma,
Moldados só pela poderosa natureza, divinamente bela,
Omnipresente e rara na leveza do seu abraço.
Por isso, quando ela, em certas épocas do ano, parece dormir
No céu ou entre as plantas e os povos,
Também os rostos dos que adensam a palavra se entristecem,
Parecem estar sós, mas são sempre futuro.
E ela própria, futurando, repousa também.
Mas desponta já o dia! Esperei e vi-o chegar,
E o que vi, o sagrado, seja minha palavra.
Pois ela, ela mesma, mais antiga que os tempos
E senhora dos deuses de Ocidente e Oriente,
A natureza, acordou agora com fragor de armas;
E das alturas do éter até aos abismos,
Seguindo a firme lei das origens, gerado do sagrado caos,
Uma vez mais se sente
O júbilo da alma que tudo cria.
E como a chama que nos olhos do homem se acendeu
Ao conceber coisas sublimes, assim também
Se incendeia de novo com os sinais, com os feitos do mundo,
Um fogo na alma dos que adensam a palavra.
E o que no princípio aconteceu sem quase ser sentido
Só agora é revelado,
E podes chamar pelo nome as fontes da vida,
Aquelas que, servis e com um sorriso,
Nos lavraram o campo: a pujança viva dos deuses
Tens perguntas para eles? No canto sopra o seu ruah
Quando desperta do sol do dia e da terra quente
Ou das vibrações troantes do ar, e de outras
Que, mais preparadas no fundo dos tempos
E mais grávidas de sentido, a nossos olhos mais legíveis,
Se passeiam entre céu e terra e entre os povos
São pensamentos do espírito do mútuo
Que culminam no silêncio da alma dos que adensam a palavra,
De tal modo que ela, logo tocada, há muito tempo
Hóspede da casa do infinito, estremece na lembrança
E, incendiada pelo fogo sagrado,
É-lhe dado conceber em amor a obra de deuses e homens,
O dom do canto, que de ambos dará testemunho.
Assim desceu, como dizem os que a palavra adensam,
Sobre a casa de Semele, presa do desejo de ver o deus,
O seu raio dardejante, e a mulher atingida
Pariu o fruto da portentosa vibração do ar, Baco, sagrado.
E por isso os filhos da Terra bebem
Agora o fogo celeste, sem perigo.
Mas cabe-nos, sob os trovões do deus,
A nós e a vós que adensais a palavra, permanecer de cabeça nua
E com a própria mão tomar do dardo divino,
Ele mesmo, e oferecer à luz comum a edénica dádiva que o canto oculta.
Pois se formos sem impostura, como as crianças,
E nossas mãos sem culpa,
Não as queimará o fogo puro do pai,
E no mais fundo âmago tocado, sofrendo as dores do mais alto,
No meio das tempestades do deus que do céu descem
Quando ele se aproxima, o coração não vacila.
Mas que fazer quando ___________
Que fazer?
E se eu disser
Que me aproximei para contemplar os do céu,
Eles mesmos me lançarão para o abismo dos vivos,
Para as trevas, a mim, falso oficiante, para que eu,
Com um canto de aviso, mate a sede aos que querem aprender.
Lá, nesse lugar ____________
- - -
Hölderlin, em tradução de João Barrento, presente no ensaio "Do peso e da leveza na palavra da poesia", in: Geografia Imaterial.
Sai pela manhã para olhar a sementeira, quando
Da noite quente desceram fogos refrescantes
Sem parar, e longe ainda se ouve a portentosa vibração dos ares,
De novo ao leito se acomoda o grande rio,
E o verde da terra se renova
E a chama do céu alegra
A cepa gotejante e no seu brilho
Crescem para o sol tranquilo as árvores do bosque ______
Assim se erguem em tempo propício
Aqueles que nenhum mestre até ao fundo forma,
Moldados só pela poderosa natureza, divinamente bela,
Omnipresente e rara na leveza do seu abraço.
Por isso, quando ela, em certas épocas do ano, parece dormir
No céu ou entre as plantas e os povos,
Também os rostos dos que adensam a palavra se entristecem,
Parecem estar sós, mas são sempre futuro.
E ela própria, futurando, repousa também.
Mas desponta já o dia! Esperei e vi-o chegar,
E o que vi, o sagrado, seja minha palavra.
Pois ela, ela mesma, mais antiga que os tempos
E senhora dos deuses de Ocidente e Oriente,
A natureza, acordou agora com fragor de armas;
E das alturas do éter até aos abismos,
Seguindo a firme lei das origens, gerado do sagrado caos,
Uma vez mais se sente
O júbilo da alma que tudo cria.
E como a chama que nos olhos do homem se acendeu
Ao conceber coisas sublimes, assim também
Se incendeia de novo com os sinais, com os feitos do mundo,
Um fogo na alma dos que adensam a palavra.
E o que no princípio aconteceu sem quase ser sentido
Só agora é revelado,
E podes chamar pelo nome as fontes da vida,
Aquelas que, servis e com um sorriso,
Nos lavraram o campo: a pujança viva dos deuses
Tens perguntas para eles? No canto sopra o seu ruah
Quando desperta do sol do dia e da terra quente
Ou das vibrações troantes do ar, e de outras
Que, mais preparadas no fundo dos tempos
E mais grávidas de sentido, a nossos olhos mais legíveis,
Se passeiam entre céu e terra e entre os povos
São pensamentos do espírito do mútuo
Que culminam no silêncio da alma dos que adensam a palavra,
De tal modo que ela, logo tocada, há muito tempo
Hóspede da casa do infinito, estremece na lembrança
E, incendiada pelo fogo sagrado,
É-lhe dado conceber em amor a obra de deuses e homens,
O dom do canto, que de ambos dará testemunho.
Assim desceu, como dizem os que a palavra adensam,
Sobre a casa de Semele, presa do desejo de ver o deus,
O seu raio dardejante, e a mulher atingida
Pariu o fruto da portentosa vibração do ar, Baco, sagrado.
E por isso os filhos da Terra bebem
Agora o fogo celeste, sem perigo.
Mas cabe-nos, sob os trovões do deus,
A nós e a vós que adensais a palavra, permanecer de cabeça nua
E com a própria mão tomar do dardo divino,
Ele mesmo, e oferecer à luz comum a edénica dádiva que o canto oculta.
Pois se formos sem impostura, como as crianças,
E nossas mãos sem culpa,
Não as queimará o fogo puro do pai,
E no mais fundo âmago tocado, sofrendo as dores do mais alto,
No meio das tempestades do deus que do céu descem
Quando ele se aproxima, o coração não vacila.
Mas que fazer quando ___________
Que fazer?
E se eu disser
Que me aproximei para contemplar os do céu,
Eles mesmos me lançarão para o abismo dos vivos,
Para as trevas, a mim, falso oficiante, para que eu,
Com um canto de aviso, mate a sede aos que querem aprender.
Lá, nesse lugar ____________
- - -
Hölderlin, em tradução de João Barrento, presente no ensaio "Do peso e da leveza na palavra da poesia", in: Geografia Imaterial.
Marcadores:
"Wie Wenn Am Feiertage",
amigos amigos negócios reparte
Assim como em dia santo...
Assim como em dia santo, para ver as terras,
O lavrador sai, pela manhã, quando
Da noite quente caíram relâmpagos refrescantes
Todo esse tempo e o trovão ruge ainda ao longe,
O rio regressa de novo ao seu leito,
E fresco o solo verdeja,
E a chuva alegre do céu
Goteja a videira, e resplendentes
Ao sol tranquilo se erguem as árvores do bosque:
Assim se erguem eles em tempo propício,
Aqueles, a quem nenhum mestre só, a quem maravilhosa
E omnipresente forma e cria em leve enlace
A potente, a divinamente bela Natureza.
Por isso, quando ela parece dormir em certas estações do ano
No céu ou entre as plantas ou nos povos,
Se enche de luto também a face dos poetas,
Parecem estar sozinhos, mas eles pressentem sempre.
Pois, pressentindo, ela própria repousa também.
Agora, porém, rompe o dia! Eu esperava e via-o vir,
E o que eu vi, o Sagrado, seja o meu Verbo.
Pois ela, ela mesma, que é mais velha que os tempos
E está acima dos deuses do Oeste e do Oriente,
A Natureza, acordou agora com ruído de armas,
E o alto do Éter até ao fundo abismo
Segundo lei fixa, como outrora, saído do caos sagrado,
Sente-se de novo o entusiasmo
Que tudo cria.
E como no olhar do homem brilha um fogo
Quando concebeu altas coisas, assim
Se incendeia de novo c‘os sinais, c‘os feitos do mundo agora,
Um fogo na alma dos poetas.
E o que outrora aconteceu, mas mal se sentiu,
Eis que só agora se revela
E as que a sorrir nos lavram a terra
Em figura de escravos, são-te agora conhecidas,
As sempre vivas, as forças dos deuses.
Queres interrogá-los?: na canção sopra o seu espírito,
Quando do sol do dia e da terra quente
Ela surge, ou das trovoadas do ar, e de outras
Que, mais preparadas nas funduras do tempo
E mais ricas de sentido e a nós mais distintas,
Vagueiam entre céu e terra e entre os povos.
São pensamentos do espírito comum
Que acabam calmos na alma do poeta,
Tais que ela, ferida de repente, há muito já
Patente ao Infinito, treme de recordação,
E, inflamada do raio sagrado, lhe é dado
O fruto nascido em amor, obra de deuses e homens,
O canto, que a ambos dê testemunho.
Assim caiu, como os poetas cantam, por ela desejar
Ver com os olhos o deus, o seu raio sobre a casa de Sémele,
E ela, ferida do deus, pariu,
Fruto da trovoada, o Baco sagrado.
E por isso bebem fogo celeste agora
Os filhos da terra sem perigo.
Mas a nós cabe, sob as trovoadas do deus,
Ó poetas! permanecer de cabeça descoberta,
E com a própria mão agarrar o raio do Pai,
O próprio raio, e, oculta na canção,
Oferecer ao povo a dádiva celeste.
Pois se formos puros de coração
Como crianças, e as nossas mãos sem culpa,
O raio do Pai, puro, não o queimará,
E, fundamente abalado, sofrendo do mais forte
As dores, nas tempestades do Deus que do alto
Caem, quando Ele se aproxima, o coração fica firme.
Mas, ai de mim! quando de...
………………………………………………………………….
Ai de mim!
E se eu disser,
………………………………………………………………….
Que me aproximei pra contemplar os Celestiais,
Eles mesmos me precipitaram fundo pra entre os vivos,
A mim falso sacerdote, para as trevas, para que eu
Cante aos que queiram aprender a canção de aviso
Ali…
- - - - - - - - - - -
Hölderlin, em tradução de Paulo Quintela,
-->Obras Completas II (Traduções I), Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997 / 1.ª edição: Poemas, Lisboa: Instituto de Cultura Alemã, 1945 / 2.ª edição: Lisboa: Relógio d’Água, 1991
O lavrador sai, pela manhã, quando
Da noite quente caíram relâmpagos refrescantes
Todo esse tempo e o trovão ruge ainda ao longe,
O rio regressa de novo ao seu leito,
E fresco o solo verdeja,
E a chuva alegre do céu
Goteja a videira, e resplendentes
Ao sol tranquilo se erguem as árvores do bosque:
Assim se erguem eles em tempo propício,
Aqueles, a quem nenhum mestre só, a quem maravilhosa
E omnipresente forma e cria em leve enlace
A potente, a divinamente bela Natureza.
Por isso, quando ela parece dormir em certas estações do ano
No céu ou entre as plantas ou nos povos,
Se enche de luto também a face dos poetas,
Parecem estar sozinhos, mas eles pressentem sempre.
Pois, pressentindo, ela própria repousa também.
Agora, porém, rompe o dia! Eu esperava e via-o vir,
E o que eu vi, o Sagrado, seja o meu Verbo.
Pois ela, ela mesma, que é mais velha que os tempos
E está acima dos deuses do Oeste e do Oriente,
A Natureza, acordou agora com ruído de armas,
E o alto do Éter até ao fundo abismo
Segundo lei fixa, como outrora, saído do caos sagrado,
Sente-se de novo o entusiasmo
Que tudo cria.
E como no olhar do homem brilha um fogo
Quando concebeu altas coisas, assim
Se incendeia de novo c‘os sinais, c‘os feitos do mundo agora,
Um fogo na alma dos poetas.
E o que outrora aconteceu, mas mal se sentiu,
Eis que só agora se revela
E as que a sorrir nos lavram a terra
Em figura de escravos, são-te agora conhecidas,
As sempre vivas, as forças dos deuses.
Queres interrogá-los?: na canção sopra o seu espírito,
Quando do sol do dia e da terra quente
Ela surge, ou das trovoadas do ar, e de outras
Que, mais preparadas nas funduras do tempo
E mais ricas de sentido e a nós mais distintas,
Vagueiam entre céu e terra e entre os povos.
São pensamentos do espírito comum
Que acabam calmos na alma do poeta,
Tais que ela, ferida de repente, há muito já
Patente ao Infinito, treme de recordação,
E, inflamada do raio sagrado, lhe é dado
O fruto nascido em amor, obra de deuses e homens,
O canto, que a ambos dê testemunho.
Assim caiu, como os poetas cantam, por ela desejar
Ver com os olhos o deus, o seu raio sobre a casa de Sémele,
E ela, ferida do deus, pariu,
Fruto da trovoada, o Baco sagrado.
E por isso bebem fogo celeste agora
Os filhos da terra sem perigo.
Mas a nós cabe, sob as trovoadas do deus,
Ó poetas! permanecer de cabeça descoberta,
E com a própria mão agarrar o raio do Pai,
O próprio raio, e, oculta na canção,
Oferecer ao povo a dádiva celeste.
Pois se formos puros de coração
Como crianças, e as nossas mãos sem culpa,
O raio do Pai, puro, não o queimará,
E, fundamente abalado, sofrendo do mais forte
As dores, nas tempestades do Deus que do alto
Caem, quando Ele se aproxima, o coração fica firme.
Mas, ai de mim! quando de...
………………………………………………………………….
Ai de mim!
E se eu disser,
………………………………………………………………….
Que me aproximei pra contemplar os Celestiais,
Eles mesmos me precipitaram fundo pra entre os vivos,
A mim falso sacerdote, para as trevas, para que eu
Cante aos que queiram aprender a canção de aviso
Ali…
- - - - - - - - - - -
-->Obras Completas II (Traduções I), Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997 / 1.ª edição: Poemas, Lisboa: Instituto de Cultura Alemã, 1945 / 2.ª edição: Lisboa: Relógio d’Água, 1991
Marcadores:
"Wie Wenn Am Feiertage",
amigos amigos negócios reparte
quinta-feira, 15 de janeiro de 2015
ou a consciência deitada
lembro do meu travesseiro preferido
ele era manchado, quase abatido
de suores e vezes sangrando as narinas
os meus poros eram os dele
os seus ácaros os meus micróbios
um dia veio alguém. minha mãe
ou o tempo ou alguém com igual autoridade
e fez meu travesseiro preferido desaparecer. minha nuca nunca
mais foi a mesma.
isto foi há uns vinte anos atrás.
segunda-feira, 12 de janeiro de 2015
Autobiographia Literaria
Frank O'Hara
When I was a child
I played by myself in a
corner of the schoolyard
all alone.
I hated dolls and I
hated games, animals were
not friendly and birds
flew away.
If anyone was looking
for me I hid behind a
tree and cried out "I am
an orphan".
And here I am, the
center of all beauty!
writing these poems!
Imagine!
(22)
Frank O'Hara
When I was a child
I played by myself in a
corner of the schoolyard
all alone.
I hated dolls and I
hated games, animals were
not friendly and birds
flew away.
If anyone was looking
for me I hid behind a
tree and cried out "I am
an orphan".
And here I am, the
center of all beauty!
writing these poems!
Imagine!
(22)
Marcadores:
amigos amigos negócios reparte
quando eu tinha 24 anos
achava que a vida
ou seria isto ou seria nada.
era um trânsito de Plutão
depois as ramagens invadiram o portão
tomaram o mármore
capins & musgos em tudo.
achava que a vida
ou seria isto ou seria nada.
era um trânsito de Plutão
depois as ramagens invadiram o portão
tomaram o mármore
capins & musgos em tudo.
Marcadores:
agora que sou sincera
com 25 anos mudei de país e descobri o óbvio: uma vez caetano, caetano até morrer
Marcadores:
amigos amigos negócios reparte
26 vezes eu recordaria esta imagem (THE HUMAN CONDITION) ao acordar
& quando isso se multiplicasse pelo fato de q hoje a ciência propõe q
o universo não é infinito, impossibilitada de multiplicar as coisas
pelo infinito, talvez eu resolvesse crescer exponencialmente, até
atingir o status de nebulosa, shiny and new, e então finalmente, a só
ser.
vinte-e-sete é o número de emails não respondidos na caixa de entrada.
Marcadores:
agora que sou sincera
TABACARIA
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
Álvaro de Campos, 15-1-1928
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?
Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.
(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)
Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.
(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente
Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.
Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.
Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.
Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.
Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.
Álvaro de Campos, 15-1-1928
Marcadores:
amigos amigos negócios reparte
que meu livro já tem dedicatória; e ela, no que não diz, dedica-se aos 29 anos.
Marcadores:
amigos amigos negócios reparte
estive aqui a pensar num outro número, 30, e pelo meu ouvido ouço
nessa música sempre "limpai", ao invés de "limpei", que é mais provável,
pela constância dos verbos reforçar (eu faço) a canção. destas pequenas
convivências vive o meu ouvido, vive a minha língua. só serve pro que
eu quiser.
perdi a memória
turvou-se-me o pensamento
não posso contar a minha história
perdi a razão do tempo
quebrou-se o espelho
não sei como sou
não sei se sou novo ou velho
não sei onde estou
no meu quadro eu só tenho
esta visão
tantos olhos apontados
à minha mão
não tem sinal nem posição
do bem ou mal não tem cartão
não trago marcas de solidão
nem gargalhadas de emoção
perdi a lembrança
da mente risquei
a história que não me interessa
a história que eu não serei
limpei a cabeça
de tudo o que ela não quer
e ao corpo fiz a promessa
só serve pro que eu quiser
será vossa imagem
que me convém
ao sair da desfocagem
não vi ninguém
não quero ver o que enganei
nem quero ter o que eu já dei
não quero ver o que enganei
nem quero ter o que eu já dei
perdi a memória
turvou-se-me o pensamento
não posso contar a minha história
perdi a razão do tempo
quebrou-se o espelho
não sei como sou
não sei se sou novo ou velho
não sei onde estou
no meu quadro eu só tenho
esta visão
tantos olhos apontados
à minha mão
não tem sinal nem posição
do bem ou mal não tem cartão
não trago marcas de solidão
nem gargalhadas de emoção
perdi a lembrança
da mente risquei
a história que não me interessa
a história que eu não serei
limpei a cabeça
de tudo o que ela não quer
e ao corpo fiz a promessa
só serve pro que eu quiser
será vossa imagem
que me convém
ao sair da desfocagem
não vi ninguém
não quero ver o que enganei
nem quero ter o que eu já dei
não quero ver o que enganei
nem quero ter o que eu já dei
Marcadores:
amigos amigos negócios reparte
sábado, 10 de janeiro de 2015
respiração
o que eu gosto mais do verão
e eu gosto muito dele
é que "vida interior" e "paisagem" são duas idéias abstratas demais
no único real que há
a mutualidade da respiração.
o q é confuso pacas
numa cidade como estas
(nossas cidades se parecem a cada dia mais / ou será que são nossas roupas? / as máscaras das embalagens de dentifrícios?) nossas
cidades de carbudores
a utilidade da máquina x a mutualidade das árvores
e o mais natural dos corpos é cansar seus pulmões. os meus, no caso.
e eu gosto muito dele
é que "vida interior" e "paisagem" são duas idéias abstratas demais
no único real que há
a mutualidade da respiração.
o q é confuso pacas
numa cidade como estas
(nossas cidades se parecem a cada dia mais / ou será que são nossas roupas? / as máscaras das embalagens de dentifrícios?) nossas
cidades de carbudores
a utilidade da máquina x a mutualidade das árvores
e o mais natural dos corpos é cansar seus pulmões. os meus, no caso.
31
nas vésperas dos meus aniversários não há nada que eu pense mais do que no Esteves, vocês também o conhecem, é o Esteves sem metafísica. fica aqui meu Adeus, ó Esteves!
Marcadores:
agora que sou sincera
Assinar:
Postagens (Atom)