Como nasce um poema?
Em andamento. Com os pés assentes na terra, com as palavras na cabeça. Do movimento nasce um ritmo, as palavras aproximam-se, imagens acompanham-me a passada, até mer forçarem a parar e escrevê-las. É então que nasce o poema: das coisas por que passámos. Que atravessámos. Que fizemos. Só está vivo aquilo que se mexe. Os poetas são coleccionadores. "Procuram com paciência para encontrar por acaso" (Valéry).
Encontrar o quê? Uma estrofe (sorte grande), um verso (sorte), uma imagem exacta (as imagens complicadas são quase sempre arbitrárias), um ritmo, uma palavra. O métier exige que se tomem igualmente, e desde logo, a sério todos os achados. Qualquer palavra se pode soltar da "pedreira do silêncio" (Stifter), pode incendiar-se como fogo de artifício ao roçar numa outra. Não são apenas as coisas que o poema faz surgir em contextos desusados; também as palavras são postas em movimento, libertas das amarras das suas significações habituais. O poeta tem de possuir aquele "olho fantástico" (Eichendorff) capaz de, num instante, aproximar as coisas mais distantes: nesses instantes as palavras abrem-se umas às outras.
O milagre: quando as palavras começam a transformar-se em poema, e de signos que nomeia a realidade passam a coisas que criam realidade. Uma realidade que obedece às leis, não da gravidade ou da gramática, mas da poesia, e que o poeta, juntamente com as palavras, reinventa em cada poema. Uma realidade das coisas verbais.
No processo de escrita assiste-se sempre à reacção das palavras umas para com as outras. Temos que deixar às palavras a sua vontade, que deixá-las à vontade. Por vezes, elas comportam-se como os objectos nas fitas de Chaplin, furtam-se de forma grotesca a todos os assédios, atravessam-se-nos no caminho e fecham-se-nos, até que por fim encontram os seus lugares certos, como por encanto. Cuidado com os adjectivos, esses lubrificantes emocionais!
No processo de escrita assiste-se sempre à reacção das palavras umas para com as outras. Temos que deixar às palavras a sua vontade, que deixá-las à vontade. Por vezes, elas comportam-se como os objectos nas fitas de Chaplin, furtam-se de forma grotesca a todos os assédios, atravessam-se-nos no caminho e fecham-se-nos, até que por fim encontram os seus lugares certos, como por encanto. Cuidado com os adjectivos, esses lubrificantes emocionais!
Há uma parte do caminho que nos é indicada pelas primeiras palavras, pelas imagens, pelo ritmo. Depois, é seguir o místico Ekkehart: ganc âne wec den smâlen stec: o caminho vai-se configurando com o andar. De cada passo nasce a força para o seguinte. Tanto dá se o caminho é pedregoso ou plano, se o poeta o percorreu de pé leve ou a coxear. Na arte não se trata de esforço e recompensa. O que conta é o resultado. O poema acabado não deve cheirar a suor. Não se deve ouvir o arrastar das correntes com que o artista dança (Nietzsche). Só intencionalmente. Mas qualquer poema escrito é melhor que o melhor dos poemas sonhados. E tem de vir de um andamento. Só assim nasce o poema. E o poeta.
de "ARS POETICA - Para os que gostam de fazer perguntas". In: A sede entre os limites. De Ulla Hahn, traduzido pelo João Barrento.