domingo, 15 de fevereiro de 2015

Na arte de tornar o espinhoso
maravilhoso, aprendi
a ralar os joelhos
sem quebrar os pulsos.
A construir sem ganância
os muros
rodeados de covas altas
palmeiras de açaís
e o ruído da água correndo
ao fundo. Quebrei alguns
dentes, com outros mordi
mas diante de tudo
de repente, eu até cri
no insaciável
fogo que acendi.

Preguei lantejolas, amei
e nunca, nunca me vinguei.
Desperdicei foi muito
                     lixo
é o que se esquece
de tirar pra fora
e, no trópico, empesteia a área
mas até às moscas do chorume
destinei o meu amor.
Não com beijos
estes, não.
Meus beijos são só teus.

Não sei você, mas para mim, a paz é uma coisa que se exercita
vejo ela abrindo as asinhas, afiando facas
lambendo beiços, abrindo latas
temperando com sal, aquilo que não mata.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

umas noites atrás sonhei que eu estava num carro numa rodovia, e a pessoa que estava do meu lado dizia que aquele que amei & me confundi estava morto, tinha morrido num acidente de carro. estava eu em outro carro, note-se que não morri.

hoje sonhei que eu estava na sala de jantar da casa em que cresci, com o meu pai e lá fora, de repente, o Grude, cachorrinho que já está morto, corria atrás da canela de alguém que passava com uma lanterna, era de noite. a minha reação me surpreendia no sonho, já que era a de também correr atrás desse alguém para ver quem ele era, e esse alguém saltava um portão que existia mesmo na casa em que cresci e como eram dois, um deles conseguia fugir, mas do outro eu agarrava a tempo canela do segundo que saltava, e de repente era de dia e o tal perigoso que eu surpreendia era, na verdade, um comerciante de palmilhas (sim, de palmilhas) que estava cortando caminho por ali. embora eu nunca entendesse porque tinha que ser por ali (ah! a propriedade privada...), ele ficava me mostrando o mostruário, depois chegava alguém que trabalhava na nossa casa e ficava desconfiadíssima com aquela história toda de palmilhas brancas e saltos de portão vermelhos.

domingo, 8 de fevereiro de 2015

Dom Quixote de las letras



DOM QUIXOTE DE LAS LETRAS
Leonardo Fróes


Devo estar pertencendo a outro planeta. O do Silêncio. E no entanto essas palavras me mordem — exigem para passar para fora. Escrevo obedecendo a um registro. A fala que me conscientiza já é estranha totalmente à idéia habitual de quem sou.

Dom Quixote de las Letras passava pelas redações e ditongos levando seu calhamaço de urros. Chegava à Editoria dos Ditongos, espiava. Via os moinhos da informação fumegando e não acreditava. Mas erguia, com um urro raivoso, a Sua Pena. Com um urro manso cumprimentava. Ninguém podia imaginar nem eu. Mas é verdade.

Na cabana onde Dom Quixote escrevia havia um coelhinho do mato que vinha o visitar com frequência. Nas grandes noites de Derrota o coelhinho sentava numa pedra defronte. Olhava para ele como um Coelho do Mato pode olhar.

Parece que isso aqui virou máquina. Tem coisas que pode, coisas que não pode, fios invisíveis ligando as grandes pás do moinho. Dom Quixote transgride, provoca, estaciona numa orelha e deita sua falação automática. De repente o espírito do local o possui. Mas de repente também ele retorna à sua e é o coração navegando sobre seu cavalo hipotético. Vê ao longe as bandeiras da proibição trepidando. Desgoverna-se um pouco, mas avança. Sente-se o próprio espelho do Homem com suas lamentáveis esporas que parecem medalhas que parecem ventoinhas malhadas e caldeirões de bronze. Como um Perfeito Cavaleiro Armado, o herói Dom Quixote — de las Letras — volta-se para o glorioso passado e recicla situações quixotescas que ele mesmo, sendo quem é, retira de velhos relicários onde guarda os Bilhetes.

Posiciona-se, p. ex., ante determinados palpites e arrisca sua navegação palavral pela língua terna e cansada. Poderia dizer umas Verdades, mas já é tão tarde, e depois esses grilos, esse choro, é melhor dizer ui! Claro que as Exclamações são permitidas ainda. Como também não é sensato deixar de reconhecer seu Direito. Mas por enquanto, não seria melhor questionar se, sendo ele Dom Quixote, necessitaria ou não de um parceiro? Xanxupança estava consertando uns arreios da Terra do Brasil recém-descoberta quando olhou pelo retrovisor do seu mulo e viu um Guarda. Pronto, pensou em seguida, aí vem rabo!

As Exclamações — ainda — são permitidas. As ponderações, também. As cogitações sobre o futuro, idem. Mas o dado concreto da Pessoa Presente, e era isso que Dom Quixote apontava, estava muitas vezes ausente. O Editor de Ditongos, coitado, ficava aparando os golpes do louco.

Dom Quixote de las Letras passaria naturalmente por louco face a um milhão de comodidades em voga. Não gostava de pentes, por exemplo, nem de ventilador. Gostava de sentir de perto as pessoas, por isso perdia frequentemente os jogos e não assaltava, era um Dom Quixote assustado que escutava corujas, também.

Ou de repente a situação da coruja e calar. Entidade presente numa luminosidade ímpar e tão depressa. Impreciso dizer. Estar. Sentir-se locomover como um urso portátil que se desdobra e — ponderavelmente — não se suicida.

Dom Quixote de las Luchas era também no fundo um gozador e também um grande sofredor e também um dileto e bastardo filho das hesitações e do acaso. Vacilava como qualquer cidadão, investia por necessidades distantes. Era comandado como as coisas são num rodopio de astros corriqueiros que muitos filósofos de antigamente chamaram de aparências do mundo.

Eu sei que é difícil dizer isso, dizia Dom Quixote sem traço, mas você vai concordar comigo que a gente faz confusão. Já era noite. Era hora de acordar e afiar as unhas de novo, porque O Mundo — sua grande namorada — estava completamente maluco(a). As paredes estavam brancas de novo, e exigiam uma pichação caprichada. Era de manhã. Era incrível como o sono passava rápido, e no entanto em camas das totais profundezas, cenas completamente antecipadas como um suspiro contente. Ui, dizia Dom Quixo.

Te quero como qualquer criança. Com a pureza de Xanxupança dormindo e esse momento alem dos sentimentos (mas não sem sentimentos) que é mais ou menos sair de cada um deles como a meia sai do sapato. Naquele tempo de outrora as indumentárias complicadíssimas exigiam grandes malabarismos para se vestir. Usavam-se monumentais espelhos mas a Humanidade era a Mesma.

A consciência crítica sobre a Humanidade e a Mesma não acudia a Dom Quixote como acusação nem defesa. Nem era propriamente uma Consciência Crítica assim com essa importância toda. As coisas doíam, sim, mas até um ponto. Dom Quixote não podia afetar uma sabedoria nenhuma, mas era clássico que ele deitava na sombra, matutando, passando pouco a pouco do seu confuso interior para a serenidade das árvores.

Bonito. A consciência crítica não era nada importante, as árvores não eram nada importantes, nem as vírgulas nem as cataratas, mas para chegar à grande evidência ele era assim desse jeito. Agia muito, por isso errava muito, e gostava de estar cheio de sangue para existir todinho. Assim.

Só o louco pode ser ponderado, dizia Dom Quixote com as folhas, porque ele passa para a vontade do outro. As paredes caem como se fossem de um papelão diáfano ou então de um material cósmico invisível. Podia manejar a Sua Pena y viver esse momento sin compassión, perfeito/imperfeito que navega no astral. Nada. Concreção e dissipação simultâneas. Ondas eventuais e longíssimas que explodem na formação de omoplatas, pessoas completas, tanques de guerra ou de lavar roupa.

Assim, quando tirava sua pesada armadura, Dom Quixote de las Letras chegava à situação quixotesca de espantar um mosquito antes de coçar a nuca e pensar. Sentir que o pensamento aparente é um detergente casual que se dissolve na água, revelando as Coisas. Novas aparências que se dissolvem também, revelando as bruscas encadeações e o sossego. Ui, que momento bonito.

Bonito. Ou então lindo. Papai Goethe pediu que ele parasse um momento. Como alguém, na metade da vida, pára e se divide em laranjas. Em dois companheiros que de repente desaparecem também e em seu local surge uma transparência que é a mistura de uma montanha serena com um vulcão pipocando. Assim. Cheio de sangue, vazio, cheio de algodão, e completamente desmemoriado também. Nuvem, farofa das circunstâncias, bolero e tico-tico.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

104

hoje meu avô, joão alfredo hansen, faria 104 anos se estivesse vivo. a memória do meu pai o contou tantas vezes, que é sempre como se ele estivesse. vejam, a memória que vocês espalham entre os seus, ela há de vingar, é de se escolher.
meu avô é o homem de gravata na foto dos meus jaguares abaixo, ao pé de uma gameleira, também pode-se ver meu tio avô e o meu pai. o meu avô era mestre de fios na indústria têxtil de americana, no interior do estado de são paulo.
não o conheci.
dizem que quando chegava dia 2 de fevereiro ele dizia: "ah! mas meu aniversário é no dia 8". e quando chegava no dia 8, ele dizia: "ah! mas foi dia 2!". e o interlocutor já sabia, era para rir, que naquele homem a vida escapava na generosidade de fazer aniversário duas vezes. e nunca.
eu hoje conheço astrologia, e não tenho muitas dúvidas de que ele nasceu no dia 2. é o grande trígono das águas que me diz.
ele pescava, e caçava, passava semanas com um amigo, desaparecido no pantanal, e trazia as pescas e caças, e distribuía entre os vizinhos. ficava com muito pouco. vinha pra são paulo todos os meses só pra trocar de carro e às vezes trazia meu pai junto e assim lhe deu para beber refrigerante, pela primeira vez. diz meu pai que tinha gosto de bicarbonato e coçava o nariz. outras vezes meu pai ficava em casa, e nesses dias ganhava sempre um periquito vindo da capital.
já com certa idade, meu avô que lia o mein kampf e detestava o catolicismo, meu avô que tinha sido ateu, tornou-se bruxo, mateiro, pai-de-santo, um xamã, sabe-se lá se eu sei o que foi, exatamente, o meu avô. que sabia curar as pessoas com as plantas, e as curava. meu avô, que deve ter matado gente na *revolução de 32.
um dia hei de escrever sua história como ela deve ser.
por enquanto só conto que na sua vida houve também um episódio daqueles macarrônicos, quer dizer, uma paella não foi assada. conto com pausar: meu avô, bem jovenzinho namorava uma espanhola em são paulo. ele mesmo vivia em limeira, e vinha às vezes até são paulo vê-la. até que foi obrigado, pelo pai da menina, a ficar noivo. que remédio além de o fazer?
na festa de noivado, contava ele, foi se servir de uma sopa de entrada, e percebeu que aquilo era um cozido de muitas carnes gordurosas. sentiu-se enjoado só de olhar. pensou: imagina comer isso durante décadas! argh, quase apagado de tontura, chegou até o alguém mais próximo e disse "vou ali comprar cigarros". e foi! sim. um clichê libertou o meu avô. você também, cuide bem dos clichês, quem sabe um dia eles te libertam.
meu avô era livre.
são raríssimos, os livres.

zzzz

milhas por vir saudações ancestrais
escambo 
me dá canela que te dou minha caneta
pouco mais valioso há.
esta vaidade 
enterra em mim 
o gozo de viver.

não te impressiona que foi pela vitória de uma gosma que encontrou outra gosma (mais carnuda, é certo) que o que havia de antepassado vingou e agora: és tu, sou eu?

nós vivos somos gosmas
os mortos também.

às vezes me pergunto se essa dicotomia 
vivo/morto
é uma polaridade real, intrínseca 
ou é só um ponto de observação 
já dizia o velho poeta que era americano e inglês 
no ponto morto do mundo em rotação
e cuspiu aos céus e cria em deus e amava (quando sim) os seus.

vou vitalizar meus órgãos: dormir.
esta semana lerei três mapas.
entre eles, o destino
entre eles um xamã
entre eles, 

dia de Iemanjá, meu avô faria anos.
 

Free Blog Counter