segunda-feira, 9 de novembro de 2020

o dia passou tão quente
o quintal parecia o méxico.
o amarelo intenso entre o vermelho
o sol nos cravos de defunto.
o calor entrou pelos músculos
como um halo de fumaça
finalmente relaxei um pouco.
comecei a te escrever
sem nenhuma delicadeza:
só nos tornamos
outra vez estranhos
porque você me enterrou
assim. acontece 
mas eu não morro.
a minha voz sopra
nas viradas de temperatura
brusca no que o mundo
vem te lembrar
que é perigoso.

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

agora é verdade eu sei eu sei eu só vim passar um alô por aqui porque não posso contar pra mim mesma a vontade que eu estava de escrever porque ainda estamos naquele momento da hibernação constitutiva de baterias rizomastcsics inside and between mas eu espero que não tenha que me explicar o porque pela primeira vez na vida não estou angustiada com a porta de silêncio que é depois de terminar um livro. cinco ou seis espadas depois ou melhor degraus que vou afiar com meus dentes quando eu voltar a escrever eu mordo. mordo o que por hora passa como uma sereia que canta e já dizia a dona disso tudo como canta uma sereia de papel.

aquele aham de garganta seca pra recomeçar

não deve ser a primeira vez que volto quando não consigo escrever, o que acontece é que desta vez não estou nem tentando, por vezes sinto o corpo de um poema se aproximando com sua massa de desejo querendo tentação e tentáculo esse tipo de joguinho de palavra doido por causar um frisson qualquer na gente – mas eu hein agora não sou mais severa e mística agora eu sou só 

alguém que por vezes pensa no que herberto helder queria dizer tanto com as casas, ou a cabeça de apocalipse daquele superlativo fogo em forma de forjar ferro brasa que não vou dizer que foi você porque fui eu mesma que espetei feito gado, ovelha

depois coloquei o sentido na vênus em sagitário, ela saiu girando, girando entusiasmada

*

minha psicoterapeuta eu não sei se devo chamá-la assim mas eu contei dois sonhos pra ela porque faz uns anos que já não é qualquer sonho que eu venho aqui e escrevo no caderno público de sonhos porque meus sonhos com a coisa pública certamente são outros como nesse momento são outros os sonhos de quem tem mininamente um coração. 

a psicoterapeuta me disse que meu inconsciente é muito meu amigo e eu agradeci porque foi um elogio carinhoso em relação ao meu maior trabalho afinal nos últimos mais ou menos 2002-2019 anos tem sido isto ser amiga do meu inconsciente pra ele vice-versa, oh relações de convívio, que elas não se esgotem nos outros, que elas não se esgotem em mim mesma. 

*

 as diferentes catástrofes ambientais que aconteceram e acontecem em 2019 tem me feito chorar. 

*

já é quase novembro e esse é o primeiro texto que vim aqui escrever esse ano. alforria blues, meu princípio que foi depois do princípio mesmo, eu afinal já tinha até matado o príncipe e virado o rei. depois vieram gregos, otomanos, todos eles passaram e ainda passam, estão a caminho de voar dessa para uma outra estrutura, como esse texto que por exemplo já não diz absolutamente nada faz algum tempinho mas mesmo assim eu continuo escrevendo porque não estou absolutamente a b s o l u t a m e n t e preocupada com isso nem com as coisas algumas que são pouquíssimas e têm em si mesmas umas testas tão franzidas que dá vontade de passar óleo de carneiro e comer com alecrim. 

*

sou alguma coisa equivalente a uma cárie de uma massa estelar que acontece assim começa a roer roer não quer mais parar até bum vir o buraco negro que ilumina mil desventuras.

desventuras aventuradíssimas 
posso prometer em cada brilho zinho.

uma coisa que eu tenho feito com recalque é moer com farinha do que tiver. depois salpico num papel de empadinha, dobro duas vezes e devolvo com cascalho escrito assim: por que você não pega seu ressentimento e come com farinha pra ver se amadurece?

em outras palavras teve uma vez que me explicaram que é só dizer assim: não se mete comigo que eu _________ 

*

na lacuna coloque por cima o seu maior medo, depois ressuscita daí e vai cuidar da sua vida. 

sexta-feira, 9 de novembro de 2018

existem pessoas que definitivamente não sabem terminar as coisas, não sou uma delas.

segunda-feira, 29 de outubro de 2018

MANIFESTO POPULISTA # 1
(1976)


Poetas, saiam dos vossos armários,
Abram as vossas janelas, abram as vossas portas,
Estiveram demasiado tempo enfiados
nos vossos mundos fechados.
Desçam, desçam
dos vossos Russian Hills e Telegraph Hills,
dos vossos Beacon Hills e dos vossos Chapel Hills,
dos vossos Montes Análogos e Montparnasses,
desçam dos nossos contrafortes e montanhas,
das vossas tendas e cúpulas.
As árvores continuam a cair
e nós deixaremos de ir aos bosques.
Não há tempo para subirmos às árvores
Enquanto o homem faz arder a sua própria casa
para assar o seu porco.
Deixaremos de cantar Hare Krishna
enquanto Roma arde.
São Francisco está a arder,
a Moscovo de Maiakovski faz arder
os combustíveis-fósseis da vida.
A Noite & o Cavalo aproximam-se
devorando luz, calor & poder,
e as nuvens têm calças.
Não há tempo para o artista se esconder
acima, além, atrás dos cenários,
indiferente, a cortar as unhas,
a refinar-se até deixar de existir.
Não há tempo para nossos joguinhos literários,
não há tempo para as nossas paranóias & hipocondrias,
não há tempo para amor e ódio,
apenas para luz & amor
Vimos os melhores espíritos da nossa geração
destruídos pelo tédio em leituras de poesia.
A poesia não é uma sociedade secreta,
Também não é um templo.
Palavras mágicas & cânticos já não funcionam.
Acabou a época do Om,
chegou o tempo dos lamentos,
o tempo de lamentar e celebrar
o fim próximo
da civilização industrial
que é má para a Terra & para o Homem.
O tempo de olhar para fora
em posição de lótus
com os olhos bem abertos,
O tempo de abrir a boca
com um discurso novo e aberto,
o tempo de comunicar com todos os seres sensíveis,
Todos vós, "Poetas das Cidades"
pendurados em museus, incluindo eu próprio,
Todos vós, poetas de poetas que escrevem poesia sobre a poesia,
Todos vós, poetas de língua morta e desconstrucionistas,
Todos vós, poetas das oficinas de poesia
no coração mais profundo da América,
Todos vós, Ezra Pounds amestrados,
Todos vós, poetas estranhos, excessivos e destroçados,
Todos vós, poetas do Concreto pré-esforçado,
Todos vós, poetas cunilinguais,
Todos vós, poetas de casas de banho públicas que se queixam com graffiti,
Todos vós, que se balançam de metro em metro mas nunca nos ramos de bétulas,
Todos vós, mestres do haiku da serração
nas Sibérias da América,
Todos vós, irrealistas cegos,
Todos vós, supersurrealistas auto-ocultantes,
Todos vós, poetas Groucho Marxistas
e camaradas da classe ociosa
que passam o dia inteiro deitados
e falam sobre o proletariado e a classe trabalhadora,
Todos vós, anarquistas católicos da poesia,
Todos vós, que nunca passaram da Black Mountain da poesia,
Todos vós, brâmanes de Boston e bucólicos de Bolinas,
todas vós, escoteiras-chefes da poesia,
Todos vós, monges zen da poesia,
Todos vós, amantes suicidas da poesia,
Todos vós, professores hirsutos da Poesia,
Todos vós, críticos de poesia,
que bebem o sangue do poeta,
Todos vós, Polícia da Poesia —
Onde estão os filhos selvagens de Whitman,
onde, as grandes vozes que se manifestam
com um sentimento de suavidade e sublimidade,
onde, a grande visão nova,
a grande perspectiva do mundo,
a sublime canção profética
da Terra imensa
e tudo o que nela canta
E a nossa relação com ela —
Poetas, desçam
às ruas do mundo uma vez mais
E abram os vossos espíritos e olhos
com o antigo prazer visual,
Limpem as gargantas e falem,
A poesia morreu, viva a poesia
com os seus olhos terríveis e a força de um búfalo.
Não esperem pela Revolução
ou ela acontecerá sem vós,
Parem de murmurar e manifestem-se
com uma nova poesia escancarada
com uma nova "superfície pública" de sensualidade comum
com outros níveis subjectivos
ou outros níveis subversivos,
um diapasão no ouvido interno
a percurtir sob a superfície.
Continuem a cantar o vosso próprio querido Eu
mas pronunciem "a palavra Massas" —
Poesia, a transportadora
que leva o público
para lugares mais elevados
do que aqueles a que outros veículos o podem transportar.
A poesia ainda cai dos céus
sobre as nossas ruas ainda abertas.
Não ergueram as barricadas, até agora,
nas ruas ainda povoadas de rostos,
homens & mulheres encantadores que ainda caminham aí,
ainda criaturas encantadoras por todo o lado,
nos olhos de todos o segredo de tudo
ainda enterrado aí,
filhos selvagens de Whitman que ainda dormem aí,
Despertem e cantem ao ar livre.



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de Lawrence Ferlinghetti, em tradução de Inês Dias.
do livro "A poesia como arte insurgente", Relógio D'Água.

domingo, 23 de setembro de 2018

depois de passar os últimos dias encaixotando coisas num lugar, movendo-as de um lugar pra outro numa mudança, com uma dor lombar que sempre me acompanha às mudanças e pensando o quanto elas – as mudanças – pra mim envolvem uma negociação interior entre uma vontade filha da puta de simplesmente deixar tudo pra trás e me sentir livre e leve pelo começo e uma negociação dolorida mistura de desapego com preguiça e inércia que é resolvida facilmente pelo gosto que tenho por materializar qualquer coisa que envolva planejamento, método, ação – desejo e movimento


depois destes dias passados e com tudo já mudado e esperando por desencaixotar (o quanto fazer caixas de mudança ou malas de viagem é uma espécie de correio em que destinatário e remetente são 1 mesma coisa-pessoa atravessada pela diferença do tempo-espaço) sonhei esta madrugada que eu entrava numa loja de tintas pra comprar uma tinta pra repintar uma "parede interior".


então a tinta tinha saído de linha, não era mais fabricada. a vendedora da loja não entendia a minha pequena frustração e eu procurava me adaptar a ideia de ter de buscar no catálogo disponível uma nova cor, até que a mulher de trás do balcão me dizia "mas é que a cor da sua alma mudou, ela agora está nesta página aqui" e apontava um azul tão profundo quanto elétrico. eu olhava pra ela e dizia "eu?". e com a tal indagação acordei às 5h40 da manhã deste domingo e não dormi mais.


*


isto tudo ou simplesmente: + 1 pequeno relato de Urano rx nos 2 primeiros graus de Touro.

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

romã_ pequeno poemário analógico-digital

ontem peguei um ciclo de poemas uma parte de dentro do meu novo livro inédito e fiz um livrinho
em PDF  _ _ _ no link: romã —de júlia de carvalho hansen

https://goo.gl/qw82tV



sábado, 8 de setembro de 2018

muitas vezes me lembro da professora que me alfabetizou, e como ela mostrava que as letras já podiam nascer juntas, porque ela me ensinou palavras inteiras — ou foi assim que minha memória juntou — e depois dela me ensinar a escrever "júlia" ela me perguntou: "que palavras você quer escrever agora?". eu logo quis escrever "abelha" e a segunda palavra que eu quis foi "saturno".


*


muitas vezes me pego pensando que o futuro é que determina o passado e não o contrário. afinal o futuro de toda repetição é ser presente quando acontece. traços na areia, na madeira, no fogo, o corpo todo marcado como uma nave vai se gastando pelo tempo do que atravessa.


*


mais que afeto, eu sentia devoção por essa professora que me mostrou que os sons, ou que os traços podiam juntar com outros traços que transmitiam as coisas que as pessoas diziam umas pras outras e lembro da minha satisfação de sentir o giz nos meus dedinhos grafando na lousa abelha saturno e desenhar em cima uma abelinha e um saturninho com seus anéis maravilhosos que me encantam até o último fio de cabelo. depois ficava com aflição do pó de giz e ia enfiar a mão na terra.


*


é curioso conseguir encontrar exatamente no meu corpo onde mora essa sensação de lembrar que aos meus 4 anos de idade poucas coisas me deixavam mais segura do que a professora que me alfabetizou & ter a memória totalmente visual de ler na lousa escrito por mim ABELHA SATURNO — essa sensação mora no meu tórax, como um colete quente apoiado bem no meio do esterno, pegando as omoplatas e sutilmente a nuca, esta região do respirar. deve ser por isso que escrever sempre teve a ver, pra mim, com um liberar de ombros.

*


era uma escola hippie graças às graças tinha horta cara de fazenda e nos incentivavam a caçar tigres imaginários por horas e horas. da mesma época eu também me lembro do primeiro menino por quem eu me interessei com olhos específicos e ele tinha a doce habilidade de subir no alto de um pé de manga e ficar lá em cima no último galho que era altíssimo e ninguém na escola era capaz de subir lá além dele. criança eu admirava o nenhum medo dele de cair lá de cima. hoje reflito mesmo o incômodo que ele devia sentir lá embaixo pra ter que tantas vezes se isolar no galho mais alto da mangueira. e o que me impressiona mesmo é que isto, ainda hoje, teria o poder de me encantar.

segunda-feira, 27 de agosto de 2018

o poder do símbolo

não faz muito tempo ele me contou que escolheu me pedir em casamento quando me viu atirando gérberas cor de laranja pela janela do carro em que atravessávamos o Gerês. a proposta de casamento veio semanas depois do acontecido e as gérberas eram para o túmulo do António Variações — eu nunca levei flores pra nenhum outro morto nem parente meu na minha vida — e tinham sido muito difíceis de achar. o amor às vezes também é um troço complicado, tínhamos andado a discutir feito loucos por dias e na busca daquelas gérberas por aldeias várias não foi diferente. quando finalmente achamos uma floricultura era o único buquê que havia disponível e com ele nas mãos eu entrei pra fazer xixi no mosteiro em frente, um daqueles de séculos onde um casamento vulgar de tão luxuoso acontecia e pensei eu hein casar que coisa horrível nunca na minha vida etc etc enfim com os gerânios nas minhas mãos e ele dirigindo nos perdemos muito muitíssimo as placas da estrada e o mapa que tínhamos não coincidiam e as estradas por ali são uma espécie de superfaturação em cadeia de rotundas — a cada três ruas há uma rotunda — ou rotatória como ser diz dos lados deste atlântico. deixando o atlântico de lado e voltando as gérberas eu fiquei tão putíssima da vida de irritada que abri a janela e comecei dramática e friamente lançar flor a flor pela janela. uma a uma, mas não todas, afinal o António não podia ficar sem — e depois disto lá nos perdemos mais um pouco pelas rotundas mas levamos as flores amansados e em paz como convém aos cemitérios. anos depois eu soube que na hora que eu atirava flores pela janela ele pensou "sou um idiota. como fui capaz de fazê-la jogar pela janela as flores que ela mais quis encontrar?".

sábado, 23 de junho de 2018

vejo no outro hemisfério meus amigos saindo de férias e aspiro todos os insetos que morreram com o extermínio desejo conseguir trazer meus gatos e daria muito mas não meu aspirador por uma barra de chocolate necessário seria só atravessar a rua para conquistá-la e muitas vezes nas redes sociais eu aperto enter entre uma frase e outra só para entenderem que se trata de um texto de ficção ou de uma liberdade artificial para falar uma coisa ou outra afirmar frases sem sentido como porém o pior é o melhor em mim mas cheias de sentido pra cabeças literais cartesianas hegelianas blablabla se assustam

domingo, 17 de junho de 2018

afundar
ir um pouco mais
centrar um foco
fui me colocar no canal
o canal era forte demais
agora vai com o lamaçal sem sem fundo sem fim eu penso
não quero estar assim quando ele vier quando ele vier estarei por cima do poço
tapando ele lá embaixo sufocado de tanto sentir vontade de abrir a tampa o meu carinho
vai dizer em forma de escárnio
não recusou o éden? então toma o iceberg
e no fundo dizer as coisas assim é voltar a menina de 20 anos que escrevia em blogues
numa forma encarecida de conseguir dizer alguma coisa mesmo que a cifrasse tanto
não por verso ou ritmo mas pelo segredo pela necessidade de tornar de levar pela sombra
de empurrar
qualquer coisa de não dito por cima duma camada de açúcar chocolate cianureto e naftalina

o quê?

todas as luzes em mim multiplicam quando eu fui perceber que no meu primeiro e no meu segundo havia uma preocupação central com o "eu" que ela desapareceu no terceiro e no quarto virou um "tu". é quase sempre bom ter um "tu" no quarto até que é insuportável porque o destino da independência é perder-se em comemorações que se esvaziam — tão facilmente — de sentido. fazia tempo eu sei que não havia uma liberação dessas de sentido, que um deus dará facilmente agente de tudo recorrente e ente fundamental da aristotélica condição perdigueira da experiência.

como eu espero que não me tomem à sério e ao mesmo tempo que delicadeza maior as coisas poderiam oferecer além de um ou outro um ou outro um ou outro desaparecimento ausência intervalo silêncio degredo exílio distância etc etc etc topos contínuos das cordilherias deste bairro onde venta todos os dias muito e eu não vejo a hora de mudar de casa.

como se fizesse os dons os tons sobrecargas 

eu olho as coisas todas como algo mais a resolver pra lidar que dê trabalho e acho que isso é algo de rins cansados e vontade de passar o inverno todo hibernando uma solidão complexa de explicar porque talvez seja a primeira vez na minha vida que tenho tão absolutamente alguém em mim mesma e finalmente ainda bem ainda bem fazer alguma coisa sem nenhum propósito penso é isso que preciso fazer coisas sem nenhum propósito e fazer nada também sem isto ser chegar ao grau menos zero do sujeito individual esse apagado aceso apagado aceso apagado aceso

porque há algo nisso que é mesmo assim na minha consciência: que só se ascende / acende quando está apagado algum nível de atenção interpretação não sei se com tanta clareza eu conseguiria lidar com as coisas mais profundamente profundas mas assim eu não quero chegar a gerir a gerar uma outra hidrelétrica de potência que vou fazer de tudo pra que tenha júpiter em sagitário

júpiter em sagitário <3 em="" j="" nbsp="" p="" piter="" rio="" sagit="">

o que isto significa? que você tem que estudar. depois de passado tempo demasiado achando que já estudou bastante esqueça tudo que estudou e perceba o que você entendeu a partir do que você entendeu desfaça o que você estudou e refaça através da prática. pronto, aí sim,

quinta-feira, 7 de junho de 2018

os seios da face

descoberto o rumor dos dias
sim eu cheguei demorou
mas posso sentir
o outono nos ossos
o vento estampa
os seios da minha face


sólido é o vento que leva as coisas embora

nesta época dos 28 dias
a minha pélvis é o epicentro do mundo
eu sinto todos os meus músculos
no esforço de subir a rua
os pulmões expandem
tanto que eu tusso

sólido é o vento que leva as coisas embora

metade desse ano já passou
rostos amarelados
fria luz de mercúrio
as roupas são todas cinzas, marrom
o cinza se espraia no vento
e afia a face das pessoas
que vem na rua
que vem na minha direção

sólido é o vento que leva as coisas embora

você sumiu tanto
em cada rosto
que cruza comigo
há uma face cinza
que tem o seu rosto.

na tua grande face

descoberto o rumor dos dias sim
eu cheguei demorou mas
posso sentir o outono
nos ossos dos seios da minha face
o vento estampa

nesta época dos 28 dias 
a minha pélvis é o epicentro do mundo
eu sinto todos os meus músculos
no esforço de subir a rua
os pulmões expandem
tanto que eu tusso

rostos amarelados
fria luz de mercúrio
as roupas são todas cinzas, marrom
o cinza se espraia
pinta cada uma das faces das pessoas
que vem na rua
que vem na minha direção

você sumiu tanto
que cada rosto
que cruza comigo
do outro lado da rua
é cinza
e tem o seu rosto.

quarta-feira, 16 de maio de 2018

fogo cruzado

Queria escrever com ódio o teu desaparecimento
erguer fúrias e avanços como fazem
a lava, os tsunamis e os delirantes.
No entanto mandei outro e-mail
falando do vermelho dos pássaros do Índico
como no jazz o drible da constância é a própria duração
de umas gotas de chuva na nuca
região fadada à incorporação de entidades
às tensões musculares, aos arrepios
à necessidade da cabeça se curvar
coisas talvez que te lembrem na vida
do que gostas é tudo movimento
e é importante que tu não desapareças de vez.
Ter um anzol, um ponto de regresso, farol
esquecer que, no fundo, os suicidas têm sempre razão.
Quando você foi visto há 150 quilômetros de casa
rumo à Moldávia, Botswana, Brasil
ou qualquer um desses lugares que só existem nas aventuras
dos teus livros lidos desde menino
percorrendo a eletricidade do teu corpo
— disseram os que te viram —
cacos de vidro, arames retorcidos no lugar das ideias
uma grande incapacidade de ser insensível
somada ao egoísmo que todos temos
que tornou argamassa o horizonte?
Antolhos é o nome do acessório de tapar a visão
dos animais a carregar fardos maiores do que eles.
Ou qualquer coisa assim na tua face
os 150 corpos mutilados
mortos estampados nas capas dos jornais
eu espero que você não tenha visto
no longo caminho pra longe de si
as notícias dos últimos dias.
tem me acontecido o que vi acontecer
escrever cada vez menos 
até me esqueci que poderia — e deveria, quiçá, até —
recorrer a esse blogue meu primeiro finalmente terminal
local de exercício vital
aqui eu posso respirar como se ninguém
estivesse vendo
posso driblar o verso posso aquecer meus dedos
na digitação sinuosa
tremiliquenta

quem sabe depois de uma duas ou três
quatro cinco frases demoradamente
tentadas um verso apareça
num tentáculo me afague e esmagando
a jugular para cima da clavícula
arranque um tanto esse sufoco
serviremos ao jantar um arenque ao molho de silêncio

como sempre tenho pensado em pessoas mortas
o espelho é um latifúndio de dúvidas
voltei a procurar alguém com quem não falo
hoje faz anos a primeira amiga com quem rompi

sinto saudades
não daqueles com quem rompi
— do rompimento talvez a única memória que me falte é a do útero —
falta mesmo de escrever daquele modo que sei
está acontecendo está perdidamente certo
fazê-lo

estou desconfigurada como quem tivesse acelerado
até outra galáxia e lá chegada
não era uma galáxia
mas algo antes da galáxia

mesmo isto, mesmo aqui
onde só fui livre e intranquila
conforme desejasse
ou mesmo simulasse
talvez até recriasse

tenho mais dúvidas que opiniões
nunca estive tão próxima da verdade
eu nunca te disse, mas agora saiba
a verdade nunca permanece
assim como as galáxias
as canções e as palavras


sábado, 27 de janeiro de 2018

essa noite eu tive um pesadelo bizarro e tão a cara da afasia que ando sentindo nesse momento brasil.

sonhei que as esquerdas faziam um movimento pra que o enorme monumento às bandeiras (o “deixa que eu empurro”) que fica na frente do ibirapuera fosse retirado dali.

eu ajudava a fazer um cartaz enorme com a frase tão culta de WB que “todo monumento de cultura é um monumento de barbárie”. ficava orgulhosa, me sentia completa de sentido, finalmente. conforme o tempo passava um clima de exorcismo começava a pairar no ar. eu me preocupava, mas já não havia como sair da engrenagem daquilo tudo.

de repente uma grande festa: havíamos vencido, podíamos fazer o que quiséssemos com o monumento às bandeiras.

quando finalmente conseguiam retirar o monumento ele era levado pra costa litorânea por um caminhão gigantesco e acompanhado por milhares de pessoas descendo a serra a pé. os ânimos se animavam e as fúrias também. algumas pessoas se metamorfoseavam em cavalos, a noite caía e alguns cavalos eram incendiados pra fazer luz no caminho.

eu lia num cartaz: “sem barbárie não chegaremos lá”. não sabia se era o caso de concordar ou não. ao chegar na beira da praia eu percebia nas expectativas das pessoas que queriam fazer da estátua de pedra um navio navegável. achava aquilo completamente sem sentido, mas já só podia, mesmo, observar.

começava a ver cartazes dizendo “deixa que eu empurro vai nos levar por mar”. eu pensava “mas levar onde?”. e alguém gritava “morte! morte! quando matarmos todos os fascistas e seus ícones vamos chegar no futuro”. futuro?

finalmente um guindaste gigantesco colocava o monumento às bandeiras em cima do oceano. quando o trambolho de pedra afundava as milhares de pessoas choravam convulsivamente, surpresas que a pedra afundasse quando colocada em cima da água. agora que afundou, alguém me dizia: “temos que escolher novos inimigos”, tirava uma espada da cintura e cortava a cabeça da pessoa ao lado.

depois eu via na televisão que a prefeitura tinha colocado o Borba Gato no lugar do deixa-que-eu-empurro.

*

noves fora, que asfixia, gente.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

acho algo invejável cada vez que eu mesma venho escrever nesse blogue, é algo que eu deveria tanto conseguir fazer que invejo a mim mesma — e também o tempo em que havia tempo e ímpeto e espaço pra escrever qualquer coisa que me faça pensar e perceber o que estou a pensar e me livrar como um sonho acelerado de mim mesma da espécie toda que eu me identifico reconheço & que em breve vou deixar de ser.

*

é claro que invejar-me a mim mesma é uma piada dos quarenta planetas em escorpião na minha revolução solar desse ano. faço 34 anos depois de amanhã, com mais cabelos brancos do que eu supunha possíveis, me tornei uma dessas pessoas que têm mais de 100 mensagens não lidas no gmail, 

*

eu entrei aqui pra escrever um poema e fiz outra coisa.

terça-feira, 17 de outubro de 2017

talvez seja esta a meteorologia que se se esperava
um ruído de trovão no meio do peito
cinquenta léguas de esperança
o tédio que antecipa a escrita
o vazio arrancado de existir
se você fosse contar uma história,
que história você contaria?
posso pedir meia dúzia de histórias
eu as tenho ao redor da minha bacia
estou vigiadamente acesa e incapaz
quem deveria me curvar em mim
além de mim?
a prática dos versos no entanto
é algo próximo do passear cavalos
coisa que eu também não sei fazer
por favor me salvem cavalos me esmaguem por favor
é meio ridículo pedir pensar eu sei
que tudo que faz sentido na minha vida
antes e depois é escrever é uma avidez
o resultado de tudo me consome
fazia anos que eu não sentia tanto tédio
acho que é por isso: demorei pra tirar férias
o que o tédio ensina?
eu vim aqui reerguer alguma coisa, apoiar
não necessariamente essa dor
de ter nascido vez ou outra volta

já envelheci o bastante pra escutar




quarta-feira, 11 de outubro de 2017

o ciúme corroeu meu poema
veio primeiro e oxidou os parafusos da latrina
lá naquele lugar onde ela se prende ao chão
eu também fiquei meio sem eixo
embora fixada num jeito de olhar
o hálito frio dos objetos atarrachados
embora saiba que seu coração
(assim como o meu)
só pode conviver em liberdade
tive vontade de cercar um abismo
e te afogar dentro dele
pra que te vendo morto
eu pudesse sofrer pra sempre dessa dor
que eu mesma inventei de conhecer
há quem fale em insegurança
eu mesma acredito mais na intuição
e detesto tanto quanto utilizo
cada mínima forma de rastreio
ainda bem que não sei lidar com chips
e outras ferramentas tecnológicas
dada a minha capacidade de transcender
o magma terrestre
me corroeu o eixo do planeta
eu me perdi me debati
e escrevi isso aqui uns dias depois


terça-feira, 26 de setembro de 2017

acordei com dois pardais dentro do quarto
se debatiam procurando o que não fosse vidro
radical em ser transparente e firme

eu causava sustos ao me aproximar
abri a janela
é o certo a se fazer com o que não se deixa tocar

no quintal caracóis imensos disputam
os restos de mamão que deitei aos passarinhos
bem cedo enquanto pedia beleza

suplicava por favor eu quero escutar
não é a primeira vez que numa ilha
meus ouvidos entopem

meu bisavô sofria do mesmo
não sei se ele escrevia, se visitava as ilhas
se perdeu como se perdem na terra

os homens têm tal mística com o mar
ser instável na sua regularidade
marulho salsugem saudade

entre as palavras que eu sei lembrar.
começa assim: uma ilha: terra rodeada de mares — instáveis na habilidade de serem regulares.
continua assim: tudo em mim é herdado, mais de uma vez ouvi dizer
viemos do mar e oscilamos horizontais

pensei algumas vezes por procurar o silêncio

não é a primeira vez que meus ouvidos entopem quando estou numa terra rodeada por águas, como todas, esta com montanhas que eram vulcões, terras tão antigas quanto vulcões: ilhas.

meu bisavô tinha isto dos ouvidos entupirem — eu não o conheci, minha avó falava disso muitas vezes. que eu saiba ele não escrevia. no entanto eu li naquele que é dos que mais me ensinou que o escritor é quem teve os ouvidos feridos.

às vezes — como todos os que vivem — me sinto como Ulisses, mas reversivo: porque não posso escutar. ou seja, sou como todos os marinheiros que precisaram tapar os ouvidos para atravessarem as sereias.

no entanto o canto se desdobra no corpo, sensações mais nítidas que o azul, contornos sem luz — mas o que não se escuta e se sente, se recria imagem na mente.

poder dizer mais coisas detalhadamente, eu diria.
e me assustei ao ver que desde junho não postava nada aqui.
o futuro há de ser o que é: diferente.

sexta-feira, 30 de junho de 2017


Posso te esperar a tarde inteira
atravessar você — o precipício
ou te chamar de Canyon
e colocar uns pássaros voando nele.

Posso te mostrar a parte de dentro
das coisas, da carne — posso me rechear
inteira de cuidados, lanças e perfumes
e desmontar à tarde todas as coisas.

Posso inventar-nos um desfecho
te chamar de ilha, charco, travessia
esquecer eu não posso — posso
dizer que eu irei me lembrar.

Posso perguntar pelo tempo
e assim conversaremos sobre o breu
normativo & inconstitucional desses dias
e de como não seremos derrotados.

Um pelo outro, talvez, não.
Só você sabe que eu não como a ponta dos pães
mas não sei como poupar as bordas das coisas,
limpar ou usar uma coisa até o fim também não é comigo.
Você também já viu de perto como eu posso perder o foco
ser levada pro invisível das coisas
e depois de muito me perder
de lá trazer mensagens muito claras.
Você já viu o cerne do meu medo
e o quanto eu posso sentir medo
e que eu o herdei. Antes de mim
quantos da mesma espécie —
os iconoclastas com rigor — falharam
como você e também eu falhamos
uns com os outros? Eu já te disse
preferia que não conversássemos
nesses termos de erro
porque tanto no meu caso
como no teu
o perfeccionismo leva ao incêndio
e tem sido boa esta temporada
de silêncio. Afinal, entre nós o intervalo
sempre foi uma forma de ligação.
O primeiro SMS que você me mandou
falava que onde você estava o céu tinha estrelas.
Eu estava no Sul, você no Norte
e o teu país era o meu também.
Não chovia, mas eu não via um só brilho
no céu — eles estavam todos em mim
e como eram só teus
não te entreguei o facto.
Contigo não preciso nunca entregar nada
já está tudo sempre entregue
e eu inventei que tinha visto as estrelas.
Hoje você sabe que eu exagero em tudo.
Posso até ter falado dos satélites
que vemos andando devagar no céu dos lugares
em que o céu à noite é muito limpo
há pouca luz elétrica ao redor
então as pessoas falam ora direis os alienígenas
e no entanto — você também sabe— deve ser a emissão
da BBC ou da NASA, ou alguma instituição que nunca
saberei muito bem o que significa
ou algo menos definido do que isto
mas você leu em algum livro a respeito
e você não vai me contar o que leu
porque acha que, no fundo,
nada disto me interessa
no fundo você acha que nem você me interessa
embora teus olhos sejam o veículo do meu fascínio
e eu sei que isto é só uma forma
de você se manter comigo
no teu silêncio, no teu mistério.
Que é uma forma de sofrer no mundo.
Logo de início percebi que você
nunca se tornaria ausente
nem na solidão emaranhada
onde você se enfurna
abisma os teus lugares
reconhece e alimenta os monstros
pacifica e encontra luz —
onde eu espero que você nunca
me leve. Mesmo quando eu me esqueço
que estamos um ligado ao outro.
Mesmo quando eu quero te aniquilar.
E ainda enfim quando reina o silêncio
depois duma disputa, ou durante
o sono profundo, distante
ou ao redor
você não some
você nunca se ausenta
mesmo nos milênios
que se esquece
de falar comigo
que se fecha
e desaparece
eu nunca duvidei
da tua presença.
a primeira coisa que eu quis de um poema
foi que ele falasse da dor que eu sentia
e o poema me ensinou a desaparecer
a segunda coisa que eu quis de um poema
foi que ele me ensinasse a caber nas situações
e ele me ensinou ventura e quebranto
a terceira coisa que eu quis do poema
foi que ele me levasse pelo braço
mas ele só tinha cauda e tempo pra outras coisas

ele só tinha tempo para outras coisas e eu estava tão cansada
de estar disposta à todas as coisas que parecia a chegada
do estado reverso — o temporário estar naquele lugar
sobre o qual falamos à noite — que escuridão

é tanta coisa que a gente vai vendo que vai se fascinando com elas
e pra mim é muito importante esse lugar de não dizer as coisas muito corretamente
porque se eu perco esse lugar se é só o lado já burilado do acontecido
um poema concebido como diz o meu amigo
tem tanto burilado antes do não-planejado
porque nascemos no claro morremos no escuro vivemos no claro e no escuro
é uma reciprocidade danada a que não se dá

e o medo que a gente tem de ficar mais um tempo num determinado lugar
ou o medo que é preciso que a gente tenha pra se aceitar um pouco adiante
do que estamos — e a falta de sentido que é preciso fazer se jogar pra dentro dela
pra poder entender alguma coisa, vivenciar algum sentido inúmero
é o meio o meio o privilégio — de ter uma coisa após a outra após o tudo

que é mesmo um meio de antes do depois. isso. nada.

quinta-feira, 22 de junho de 2017

tenho pensado que o trabalho do xamã, não sendo exatamente autoria nem interpretação, certamente é uma assinatura.

*

vi um rapaz a cantar numa cerimônia de ayahuasca e ele tinha a técnica e a língua do canto, ele tinha os canais abertos, mas ele não tinha o próprio espírito a cantar: ele não assinava. que curioso foi isto — percebi que não havia assinatura em um canto. isso fazia do acontecimento todo muito desenraizado. a falta de espírito próprio, a falta de gesto de assinar criava uma falta de ligação nos vínculos que o canto cria.

*

dia desses devo escrever sobre como acho que uma normatização tácita de termos, que aumenta conforme a ayahuasca entra (a cada dia) na moda, um hábito de usar as mesmas palavras-chave como "medicina" ou "consagrar" acaba criando uma língua em comum que amarra as experiências e, por vezes, mascara uma série de vazios espirituais.

escrever que a normatividade da língua sempre sempre sempre inclui / esconde uma moral. a moral é gasta e encardida. um beijo no roland barthes & outrxs tantos que me ensinaram a ler e que seguem tomando ayahuasca em mim.

*

& outra coisa: é o que me disse uma vez uma xamã (a minha preferida, aliás): só a luz opera, mas as transformações só acontecem no escuro.

domingo, 18 de junho de 2017

A VENTANIA NÃO ALIVIA

É bom que nosso amor vá ganhando
assim uma dimensão humana
que a gente não tenha que atravessar paredes
mas só as correntezas, as colinas
os dias em que neblina na descida
ao subterrâneo de nós mesmos
— e, sem dilaceração, convivemos.
A curva dos dias que se tornaram anos
mostra que o ponto
de um ponto ao outro
em nada retilíneo
desenhou um círculo entre nós.
Isto a cada dia me acalma
conforme as fúrias e as suas ventas
arrancam aos pedaços
os horizontes, as perspectivas
com pouco ou nenhum interesse
no que nos acontece
tenho todos os dias as mãos cortadas.
Dia desses fritava um hambúrguer
quando o fogo subiu pra cima da frigideira
e aquele pequeno incêndio que eu vi
eu pude assoprá-lo sem precipitação.
Confesso que, quando deu certo, tremi
um pouco nas bases, mas não deixei
que se instalasse o desespero
dos que estão imersos no destino.
Um dia é cedo no mesmo dia é tarde
e a ventania não alivia o calor.

sábado, 17 de junho de 2017

sonho tantas vezes que estou em hotéis que concluí

* nunca me sinto completamente em casa
* viajar é a osso de toda experiência (uns 35% dum mapa em Sagitário)
* até meu inconsciente é burguês


*

o que eu quero contar é que no sonho da última noite o hotel ficava em cima do mar. o gerente que me recebia ainda no lado da terra tinha os cabelos compridos clareados com parafina e um tridente (sim, o gerente tinha o tridente de Netuno) num dourado purpurina bem pride.

ele me mostrava a ponte que levava pra dentro do hotel e na areia da praia ao redor da ponte muitos banhistas tomavam sol, alegres e cheios das plenitudes da beira do mar num verão. então o mar — azulzíssimo que chegava a ser insuportável de tanto brilho — avançou toda a espuma em ondas imensas passou por cima de todos os banhistas. que, detalhe, sequer se mexeram com aquelas lambidas intensas das ondas.

sorri pro rapaz do tridente, que sorriu para mim e disse: "agora que já vimos o que acontece, podemos entrar, onde estão suas malas?". "nas minhas costas", respondi.

Touro


faz mais de um mês que estou pra postar este texto sobre o signo de Touro. e ainda farei uma piadinha capricorniana (que sou): "é que Touro demora". demora porque tem que acumular força, desejo, ímpeto, até agir e avançar com toda a sua intensidade. densos, estáveis, são tão capazes de enfrentar qualquer coisa como de adiar o enfrentamento de cada coisa o mais que se possa. Touro é capaz de mover uma montanha depois de ter se tornado a própria montanha.

signo de inércia, Touro se sente tão bem no seu estado montanha como quando dispara feito trem-bala. a dificuldade para Touro está na transição entre um estado e outro da matéria. signo de Terra, Touro divide com Virgem e Capricórnio o domínio da matéria e da sensação. Touro é a matéria mais jovem de todas, Touro é a aparição do corpo e de todas as sensações que um corpo é. freio para o exagero de ímpeto de Áries, Touro medita a plenitude das coisas, sendo o ápice da primavera no hemisfério norte.

se Áries é o "eu", Touro é o "meu". assim como Áries, Touro tem vocação pra ser do próprio jeito sem nem sequer observar o ao redor. redor? isto lá é coisa que Gêmeos vai inventar com a linguagem, Touro é o reconhecimento do corpo, este ser vivo cheio de vontades, desejos e imperativos. o ao redor pra Touro é o que pode estabelecer ligações de posse e sensibilidade para o seu eu, o corpo. pragmáticos, simplificadores, taurinos podem ser tão refinados quanto sintéticos.

auto-centrados, sim, egoístas, muitas vezes, os taurinos criam vínculos com a matéria ao redor pra que ela confirme e forneça a energia da sua força. são primários como uma criança, pois o mau humor (que por vezes neles torna-se uma constante) quase sempre é fome ou sono. ao mesmo tempo, quando amam, quando são amigos, taurinos podem fornecer toda a energia que têm para amparar, sustentar, dar chão para alguém. tem uma força de trabalho, amparo e firmeza incomparável.

há quem diga que eles têm a força do boi, que podem carregar qualquer coisa que desejem atrelada no pescoço. mas quando não querem empacam, são inamovíveis. tentar, por exemplo, convencer um taurino a mudar de ideia é o mesmo que pedir pra que uma montanha se mova. vibráteis, taurinos podem ser delicados como uma flor de camomila tomando sol e brisa, como podem ser brutos como a pata do Touro que esmaga a flor sem nem sequer vê-la.

sensuais, passionais, obsessivos e cheios de segredos como seus antagonistas complementares (os escorpiões) taurinos são muito menos emocionais do que estes, mas Touro também é sensibilíssimo às atmosferas e aos ambientes. talvez seja por isso que procurem e conheçam a priori o que é beleza, o belo. em Touro beleza e conforto são uma mesma coisa. esta simplicidade é, sem dúvida, uma das sabedorias de Touro.

Touro bem vivido está sempre rente ao nutrir-se de prazer, taurinos costumam ter o paladar exigente, conheço alguns que cozinham como deuses, e que também podem saltar da calmaria ao nojo com algum cheiro incômodo, um alimento mal feito. são exigentes com o prazer e quanto menos plácidos estão, mais aversões encontram. pessoas com ênfase no signo de Touro podem ficar viciadas pela avidez das sensações e aí passarem a vida a sofrer de incompletudes ou a se estourar pelos excessos de permissividade, a letargia do prazer. são, com ênfase e vitalidade, uns exagerados.

regidos por Vênus, muito se fala da sensibilidade de Touro que pede com que tudo na vida tenha o ritmo que o corpo mandar. é por um respeito ao ritmo orgânico, que taurinos ficam tão contrariados quando pedem pra que eles se apressem. Touro é ritmo. é também a vibração das cordas vocais, Touro é a voz, a garganta. essas áreas de desejo.

é o signo da minha Lua, sou casada com um taurino, tenho dezenas de amigos de Touro e, curiosamente, um punhado de ex-amigos de Touro também. como uma anedota biográfica conto que sempre que espero meu marido pra gente sair (o que acontece toda vez que a gente sai), primeiro me incomodo por estarmos atrasados (sozinha eu nunca me atraso), depois de muito observar me lembro como ele é bonito por estar só colocando o ritmo real do tempo nas coisas. que métodos, adeus calendários, pra que relógio? o tempo da Terra, o tempo está na matéria do corpo: Touro.

é fértil, constante e fecunda, a Terra de Touro.

sexta-feira, 16 de junho de 2017

Só você sabe que eu não como a ponta dos pães
e que não sei como poupar as bordas das coisas
limpar ou usar uma coisa até o fim também não é comigo.
Você também já viu de perto como eu posso perder o foco
ser levada pro invisível das coisas
e depois de muito me perder
de lá trazer mensagens muito claras.
Você já viu o cerne do meu medo
e o quanto eu posso sentir medo —
e que eu o herdei.
Antes de mim quantos da mesma espécie falharam
como você e também eu falhamos
uns com os outros? Eu já te disse
preferia que não conversássemos
nesses termos de erro
porque tanto no meu caso
como no teu
o perfeccionismo leva ao incêndio
e tem sido boa esta temporada
de silêncio. Afinal, entre nós o intervalo
sempre foi uma forma de ligação.
O primeiro SMS que você me mandou
falava que onde você estava o céu tinha estrelas.
Eu estava no Sul, você no Norte
e o teu país era o meu também.
Não chovia, mas eu não via um só brilho
no céu — eles estavam todos em mim
e como eram só teus
não te entreguei o facto.
Contigo não preciso nunca entregar nada
já está tudo sempre entregue
e eu inventei que tinha visto as estrelas.
Hoje você sabe que eu exagero em tudo.
Posso até ter falado dos satélites
que vemos andando devagar no céu dos lugares
em que o céu à noite é muito limpo
há pouca luz elétrica ao redor
então as pessoas falam ora direis os alienígenas
e no entanto — você também sabe— deve ser a emissão
da BBC ou da NASA, ou alguma instituição que nunca
saberei muito bem o que significa
ou algo menos definido do que isto
mas você leu em algum livro a respeito
e você não vai me contar o que leu
porque acha que, no fundo,
nada isto me interessa
no fundo você acha que nem você me interessa
mas teus olhos sabem o meu fascínio
e eu sei que isto é só uma forma
de você se manter comigo
no teu silêncio, no teu mistério.
Que é uma forma de sofrer no mundo.
Logo de início percebi que você
nunca se tornaria ausente
nem na solidão emaranhada
onde você se enfurna
abisma os teus lugares
reconhece e alimenta os monstros
pacifica e encontra luz
onde eu espero que você nunca
me leve. Mesmo quando eu me esqueço
que estamos um ligado ao outro.
Mesmo quando eu quero te aniquilar.
E ainda enfim quando reina o silêncio
depois duma disputa, ou durante
o sono profundo, distante
ou ao redor
você não some
você nunca se ausenta
mesmo nos milênios
que se esquece
de falar comigo
que se fecha
e desaparece
eu nunca duvidei
da tua presença.

terça-feira, 13 de junho de 2017

hoje fiz algo arriscadíssimo: li em voz alta e em público meu poema preferido do fernando pessoa (e este é do alberto caeiro) e trechos do cântico dos cânticos — atribuído a salomão — na tradução da fiama .

me diverti tanto.

cada dia mais entendo que é a parte solitária da vida que nos toca num poema, mas através do grande ser vivo em comum que existe, que é o comum da linguagem verbal, a linguagem do verbo como encaixes do que vai vibrar pra um ou outro.


acho impressionante quando estou em cerimônias de ayahauasca e não entendo nada do que o xamã canta na língua dos shipibo ou dos huni kuin e de repente alguém fala uma palavra numa língua que eu entendo. a palavra aparece sempre como uma chave de fenda, um martelo, uma pinça. a palavra muda tudo.

ando a cada dia mais atenta às vibrações que sinto no meu corpo enquanto convivo com as pessoas, elas permitem com que eu conviva sem tanto medo dos outros. e essa coisa de estar em público trazer o ressoar das moléculas num em comum — enquanto lia o caeiro sentia a alegria de haver palavra, quando li o cântico a alegria de que a palavra possa ultrapassar a si própria, a palavra-transe, a palavra-eros.

quando lemos um poema toda a linguagem de uma vez atravessa este corpo-espaço, através dos afetos sensações rumores jogos lógicas o nonsense. o poema projétil — o poema pedra.

se toda alegria é compartilhada dar a voz é um lance muito louco, a voz de um poema imenso ilumina a garganta e — durante esta travessia — abre os canais todos.

fica tudo aceso. o poema é uma tomada, afinal.

domingo, 7 de maio de 2017

Áries



gostaria de ter postado este texto enquanto o Sol ainda estava em Áries. mas 15 dias atrás eu estava derrubada pela força da juventude da minha nova vida. coincidentemente, tinha acabado de acabar o trânsito de Urano em Áries quadrando o meu velho Sol em Capricórnio e eu estava de rastros, literalmente de queixo caído com a quantidade de novidade do atual.

aprendi e aprendo muita coisa com Áries. a reconhecer o que é simples pela sua unidade, a não me preocupar tanto, a ligar o foda-se, a fazer sem entender. também aprendo algo que nunca sei o que é, porque quando me atenho a observar, já é um novo instante. Áries é ágil.

Áries o intempestivo, o imediatista, o fogo do princípio, sempre a começar. de novo. e de novo. com seus dons enérgicos, vitais, agudos. o Carneiro é a faísca do zodíaco, existem aqueles que são um fósforo, riscou acendeu e ariano que se preze vive na base do bateu levou.

costumo brincar, em leituras de mapas de pessoas com ênfase em Áries, dizendo: "na vida você vai passar dez mil vezes pelas mesmas coisas achando que é a primeira vez . os conservadores ao redor vão te dizer: 'mas você não aprende?' — e faço a sugestão de que respondam: 'aprender? pra quê? se é sempre a primeira vez!'". e lá vai Áries, dar de cabeça nas coisas. Áries rege a cabeça. li certa vez que isto é porque a cabeça (costuma) sair primeiro no encaixe entre bebê e mãe na hora em que se nasce. Áries está sempre nascendo.

e com que integridade! íntegros a si mesmos, poucos signos são tão associados às noções de rebeldia e descontrole perante às normas. é que Áries está muito antes de qualquer regra, os Carneiros ainda nem passaram pela sensação de ser um corpo que virá em Touro, e assim estão bem antes da linguagem de Gêmeos. antes da sintaxe, os Carneiros estão pra fora de qualquer regra e toda pessoa de Áries se envaidece quando ouve dizer: você é instinto. e instinto, todo mundo sabe, é o imenso componente do desejo. calor e humor.

imperativo desejo, Áries é a morada diurna de Marte. sensuais, sexuais, arianos são vitais. serem regidos por Marte dá em alguns belicosidades descontroladas, ou em artistas do lutar em movimento, a audácia de guerrearem guiando uma biga carregada pela força de dois cavalos: o condutor Áries é cada faísca do animal que é e que age antes mesmo de pensar. às vezes eu acho que Áries sente tudo diretamente no sangue, e quem duvidar lembre-se da última vez que viu um ariano sair do sério.

que se deixe a alteridade para o seu oposto complementar, que Libra procure a harmonia, o que Áries tem não é preciso procurar. existe, está e é: o oposto do outro: Áries é o eu. o tão-único-e-somente-eu-mesmo Áries é uma criança, uma criança antes da intrusão de qualquer sociedade. antes das normas estão as demandas, arianos são capazes de fazer tudo sozinhos e do próprio jeito (e prezam a independência como poucos) e podem ao mesmo tempo ser tão sozinhos quanto demandantes. quanto mais incivilizado é um ariano mais ele parece uma criança carente de atenção e quanto mais carente um ariano está, mais incivilizado ele será.

aventureiros que desconhecem o risco ou que fazem do risco o combustível da sua jornada. enquanto outros calculam, Áries já foi. Carneiro abre caminho. embora Peixes seja a antena da espécie, o insight também é ariano. velozes, radicais, conquistadores. são o fogo do princípio, o louco na beira do precipício, o começo, o acesso, o aceso, o primeiro. a ingenuidade os protegerá.

únicos, afiados e singulares, arianos podem conhecer como ninguém a margem que há entre o egoísmo e a integridade. belos questionadores são os arianos que indagam: eu quem? e olham pra si mesmos de forma a encarnar o prisma de instantes que são. quando gostam de si mesmos e se observam na multiplicidade de instantes que são, arianos reluzem algo tão genuíno como a descoberta do fogo.

terça-feira, 2 de maio de 2017



hoje transplantei umas espadas de são jorge
conheci ouvindo uma mulher que era visitada por anjos tão altos no século XII que padecia de fraquezas
foi santa beatificada sua voz
cantou nos meus ouvidos
a vida de três mulheres com quem conversei sobre suas vidas
vi você virando paisagem
não soube lidar com esse vento sem mãos
e receber o outono é um nó na garganta atrás de outro
risco de tétano nas tectônicas camadas que trazem as estações
se no outono o que me resta é tomar chá
tomei o chá de tília que veio de Lisboa
pela última vez percebi mil coisas e as perdi pela última vez percebi que não será a última vez
faltou tempo pra comprar água pra tomar com limão
eu fervi meu tempo a esperar por alguém que não vem
antes de me deitar no espelho
reparei no comprimento desde meus 20 anos
quando eu ainda os usava presos
eu não tinha o cabelo assim tão comprido
minto tive aos vinte e cinco
quando os escorria nos ombros
de alguém eu riscava a pele
de nem sei mais quem sou
mas eu me lembro

segunda-feira, 1 de maio de 2017

só mesmo o outono tem capacidade de me deixar triste
como você eu não conheço com tanta elasticidade
alguém no vai e vem além de mim
que sou capaz de quebrar um osso
tanto meus músculos se alongam
na sua direção eu fiz a sugestão 
de que nos encostaríamos tão rentes
de pulmões cheios que estávamos
cheios de potros as cavalgadas duras
as estações nunca vem sozinhas
você virando paisagem
à noite depois de ter conversado
com a minha própria capacidade de me sentir
só um ponto no espaço a ouvir uma mulher
do século XII ouvia anjos tão altos
que lhe tiravam a energia do corpo
ela adoecia eu padeço
espécie de rito culto ode a solidão dignificante
já não me lembro carícias iluminação
completamente o significado de certas coisas
volto atrás apagar quem fui
estou dando marcha a trás
sou verdadeiramente incapaz
de lidar com este vento sem mãos

domingo, 30 de abril de 2017

tive esta noite um sonho muito explícito. tenho tido sonhos muito explícitos. esta noite foi dos mais bonitos sonhos que já tive. um tigre tigre tigre imenso se aproximava de mim. eu estava na beira duma piscina num fim de tarde morno de verão. piscina enorme, quase não tinha área sem água naquele lugar. o tigre vinha ladeando pela lateral. o tigre me cheirava, cheirava as outras pessoas que tinham medo dele. eu não tinha confiança, mas também não tinha medo. saía da piscina, já estava dentro do hall do hotel e o tigre entrava pelo corredor e vinha me cheirar novamente. desta vez ele insistia comigo, erguia minha mão com o focinho, o tigre começou a me lamber, me deitou no chão e deitou no meu colo, o tigre me deu um abraço, enquanto me lambia como uma cria. então o tigre falou: "estou muito feliz de te encontrar. você é uma das 9 pessoas que conhece a encarnação da Lama budista que estou procurando". eu era um sinal de contentamento para o destino do tigre do meu sonho. e acordei com a Tétis com o focinho no meu nariz, ronronando.

quarta-feira, 19 de abril de 2017

Não, não vá pensar na falta de propósito da vida esta noite
sua ambição seria delinear um abismo
pois modéstia você não encontra nem quando vai ao fundo
nem vá saltar as incertezas num punhado de fumo
a marejar os horizontes, os sentimentos e as calcinhas
e as meias trocadas de gaveta com elas
tudo um pouco mais bagunçado do que deveria
em nenhum canto desta casa há fogo
talvez encontre nos fósforos que você roubou dum restaurante
de peixe fresco e trouxe da Califórnia um sentido
talvez observar na faísca a dilatação da fenda
acendesse a capacidade de se iluminar
pelo sabor do vento que foi o primeiro toque
toque que a vida fez no seu rosto lembrança
quando seu corpo era só o luto
de alguém que em ti morreu
talvez este alguém vivificado pelo vento
talvez o acúmulo de nuvens da cor da cidade no céu dela
talvez você seja capaz de juntar um girassol a dura noite
tornar proibido que pessoas com menos de 25 anos possam alguma vez ser tristes
porque isto te faz sofrer
e no fundo é uma ambição ser simples
num gesto mágico
estou tão apaixonada pela densidade de cada coisa
que quero atravessá-las todas com os meus lábios
mas não quero que você traga nenhum peso para dentro
nisso
nem o cansaço nem o medo mas traga um pouco de rigor
a beleza das plantas carregando gestos de saúde
e o fato de que você não consegue mais ver ninguém
como um mestre
porque estamos todos perdidos mesmo
de nós dois, dos dias
talvez você possa acolher o instante
e tornar-se frágil
faz parte dessa sabedoria
assim como você aprendeu nos livros
a ouvir o que você sente
os órgãos também estão cheios de saúde
como os seus amigos que respiram todos os dias
todos os dias têm tantos gestos de saúde
que não acreditariam em você falando tanto
consigo mesma na segunda pessoa.
E tão multiplicadas as vezes no plural.

sábado, 1 de abril de 2017



fazia anos que eu não acordava e assistia um filme, um filme preferido. eu recorro a três filmes quando estou com um buraco no lugar de mim e um deles é o Fritzcarraldo. só neste momento percebi que os outros dois também têm nomes com encontros consonantais imprevistos. seria melhor que eu explicasse isso mais demoradamente?

um filme que me mostra quanta honra é possível ter no dramático, quanta coragem no impossível da afirmação. sou tão estupidamente otimista que, embora tenha que nadar de quando em quando nas marés do ódio e do ressentimento, que eu acabo convivendo com um tal treino das emoções como se me preparasse para uma olimpíada.


num primeiro momento é preciso conhecê-las, reconhecê-las, e depois disto tratá-las com uma firme mão de linho, uma pinça precisa bisturi nas mãos dum ninja, ah a navalha amaciada e morna do coração, que se acessa também com a respiração. pensamento é respiração, respiração é pensamento. mas a maior parte do tempo eu passo a reconhecê-las: "isto que passou como um raio me levantou até os céus e de quando em quando desaparece? euforia"; "essa substância oleosa que me contrai os músculos e chega a doer a cabeça que a controla? o ódio"; "o azul em que tudo está que varia do de fundo a suave nuvem? tristeza" & por aí vão os caminhos do reconhecer. escrever ajuda muito.

sou uma pessoa da música. a maior parte da minha pessoa encontra vida emocional na música. do mesmo modo que uma pintura me mostra como ver a paisagem, o que eu sinto me ensina a sentir. é preciso muito respeito para manejar uma emoção. as realidades esmagam, foi Eliot quem disse que o gênero humano não é capaz de suportar muita realidade e disse isso soltando um pássaro: go! go! disse o pássaro que não é de Eliot e nem mora neste poema e no entanto nele voa. o gesto mágico do que voa num poema.

eu mesma me enovelo muito me desaprendendo hábitos emocionais. eu digo pra eles: saltem, eles não saltam; eu digo pra eles: fiquem, eles saem correndo. treinar as mãos no desastre: este poderia ser um dos meus nomes, dizendo sempre adiante, por que não ultrapassar uma montanha com um barco em cima? pelo menos poderemos sorrir do absurdo tanto que nos reconheceremos nele e por inteiro.


quarta-feira, 29 de março de 2017

a vida no entanto se alarga do inconstante ao pântano
e nos malabarismos de lidar com os estilhaços
de pessoas que eu venho me tornando
eu que já depositei sementes que viraram árvores
atravessei algumas vezes o oceano Atlântico
conheci o Pacífico no último outubro
(lá era outono, e agora é outono por aqui)
e que dentro de poucos meses conhecerei o Índico
mesmo assim eu ainda carrego problemas
em usar palavras antigas
como pranto que rima com o quebranto
que acho que é o que estou sentindo
embora não saiba se isto é só uma nódoa
um anzol ou meu velho hábito de me meter
em maus lençóis, como dizem, eu prefiro
algodão ou linho pois eu sempre me enovelo tanto
no pouco tudo em que me envolvo o seu nome
aparece que eu tenho tanto você
como pude eu, poeta, perder o ritmo
forçar os enjambement pra cima do nível
do aceitável tropeçar
na brisa que respiro
navegar o galope
eu já posso dizer o que eu sei
posso considerar que a vida é um eterno
dar biziu curto-circuito ou tilt
e nas faíscas do dia a dia eu espero
um dia dar em clarão, pessegueiro
tomando a luz dum sol
nítido e manso e morno.
embora um senso exacerbado de estratégia
nunca fui muito boa com dimensões
não sei dizer o tamanho de nada
embora saiba o tempo que se leva de um lugar a outro
com os números tenho o hábito de não calculá-los
e geometrias só me interessam as que formam os astros
no ponto de vista da terra
entre o perto e o longe a dimensão que importa
é o tamanho dos teus cílios
e como eles se curvam
conforme você ri ou se preocupa
eu me atenho a ter a ciência
de respirar na frequência
dos satélites que se movimentam
em órbitas regulares
e estudo tanto cada gesto ou cada passo
e sei que mesmo assim a qualquer instante algo pode sair do lugar
alguém quebrar os dois tornozelos
perder o timing do spaghetti
e o macarrão ficar molenga
ou uma abelha zunindo no teu cabelo
fascinada pelo açúcar no café
num acesso de vertigem meu eu ruidoso
o corpo como um enxame
zunindo na direção oposta ao meu caminho
quando o dia terminou eu pensei que não pediria outra coisa
além da noite cobrindo de escuro
se aproximando de mim
tudo o que eu desconheço
sem que eu veja
ou tenha controle
porque eu vivo.
e o que é vivo prolifera.

segunda-feira, 13 de março de 2017

Peixes

desde que o sol entrou em Peixes, sem pensar muito claramente fui deixando fluir este texto. acabo por escrevê-lo neste domingo, num momento em que tenho espaço emocional & acabou de acontecer a lua cheia no eixo de oposição complementar que Peixes forma com Virgem. coesão e silêncio, purificação e prazer, dispersão e rigor estão conversando nos céus. pelos vistos para escrever sobre Peixes eu precisava mesmo de um dia em que êxtase e critério estão em questão como hoje. Peixes têm isso: ritmo.

com seus irmãos Câncer e Escorpião, Peixes é um signo de água, signo portanto de emoção, comoção: mutualidade. mais que mutualidade: comunhão: onde os ritmos de dentro e os ritmos de fora da gente são uma mesma coisa. isto também é algo que nos ensina o signo de Peixes. porque, verdadeiramente, sinto que nós temos todos o que aprender com eles, os últimos, os derradeiros, os que passaram por tudo e que são tudo e (ao mesmo tempo) são o vazio. mas não é preciso se curvar para aprender algo com Peixes, nem eles precisam formular opiniões, métodos e verdades como seus primos mutáveis (Gêmeos, Virgem, Sagitário) passam a vida a fazer. é caso de simplesmente se aproximar e deixar fluir, intuir, sentir. sensibilizar, contaminar.

se Peixes se aproxima, encosta e revela sua capacidade de mutualidade imediata. "minha especialidade é a metamorfose" alguém pisciano poderia dizer com afeto, enquanto foge da sua incapacidade de separar as próprias coisas e os problemas dos outros das próprias questões. personalidades piscianas estão sempre a fazer algo pelo outro e às vezes sem nem perceber. muitas vezes é bondade, às vezes é indulgência, ou inconsciência.

podem fazer isso pela compaixão intrínseca que carregam, uma compaixão por vezes sofredora como a de Cristo, em outras liberta como Buda; ou podem fazer pelos outros (perigo!) por uma alienação da capacidade de decidirem o próprio rumo, ou de se aperceberem das próprias sensibilidades. Peixes é tão sensível que às vezes para descansar de si procura anestesias. é compreensível, mas nada é mais perigoso para Peixes do que deixar de sentir.

pessoas com ênfase no signo de Peixes têm que se proteger. corpo/espírito/mente/emoção são uma mesma coisa. seja brisa ou furacão todo movimento ao redor altera os fluxos das ondas, e Peixes está sempre no plural: indo para múltiplos lados. e Peixes que não encontra a própria força de vontade é mais perigoso que rodamoinho no mar.

não quero dizer com essas coisas que piscianos não possam ser bravos. suas altíssimas capacidades de aceitação e perdão vão até depois do depois do perdão, mas uma pessoa de Peixes que seja invadida ou tomada pela revolta pode fincar seu tridente como o mar que avança sem nunca retroceder. tsunamis, mares de ressaca, fúrias sem sentido muito aparente que arrastam tudo o que não quer ser levado. Peixes leva. e embora leve raramente em fúria, Peixes mais naturalmente leva tanto que pode até ludibriar, a lábia da sua postura conciliadora, redentora e/ou de sedução.

sedutores e dramáticos. como sofrem em silêncio, como sofrem em lágrimas. sofrem. e Peixes precisa escutar o próprio sofrimento. precisa aprender a ouvir e a cuidar de seu corpo/espírito/mente/emoção pra não ficar só no blue blue blue, sozinho no fundo da escuridão do mar.

mas Peixes também precisa de alguma solidão pra se recompor, pois em qualquer ambiente Peixes é a antena e a esponja. a capacidade de absorção pisciana é do tamanho do mar inteiro. com isto, Peixes precisa buscar nitidez e algo me diz que o modo de consegui-la passa por criar consigo mesmo a mesma mutualidade que tem, sem mediação, com o fora. Peixes não tem filtro. Peixes tem e precisa de vida interior.

muitas vezes que vejo piscianos sofrendo e desesperados tenho a impressão de que eles não estão exatamente confusos: estão poluídos, contaminados. com isto, todas as formas de cura energética, das psicologias às massagens, das meditações aos xamanismos, isto sem falar nas práticas espirituais sagradas ou não, os processos simbólicos, as festas onde os egos se perdem, os êxtases reveladores das alterações da consciência, todas podem ser recomendadas e serem proveitosas para Peixes.

mistério sempre há de pintar por aí e Peixes têm sempre sempre sempre que limpar, purificar. e quando fazem isto: que calma e paciência antiga possuem de espírito & alma. porque, claro, se há signo que tem espírito e alma, este signo é Peixes. Peixes abarca, Peixes é o colo de Iemanjá.

isto pra dizer que de modo algum a limpeza pisciana se dará de modo higienista e criterioso como seu oposto complementar que é Virgem. Virgem cria meios e modos, Peixes é a entrega à perda de conceitos e às vezes isto mesmo, um pouco de caos ajuda Peixes a se encontrar. a convivência tranquila com sua mutualidade a tudo, às vezes é o suficiente para fazer com que um pisciano se purifique. sendo ambos os signos da cura, Peixes divide com Virgem o eixo da medicina, e com esta responsabilidade certamente é importante que Peixes se firme no espaço-tempo do próprio corpo, mas isto dificilmente se dará por alguma via rigorosa, restritiva. mais proveitoso é acalentar, acolher a própria sensibilidade. Peixes é sensibilidade. é a dança.

signo de silêncio e de escuta, Peixes é música, os poros abertos, os pés ágeis. Peixes ouvem com a pele e muitas vezes se tem o costume de chamar a atenção dos piscianos por eles perderem o contorno da realidade, seja através de drogas, das artes, da loucura. sempre na borda entre o lá e cá, a supraconsciência do delírio, os escapismos, as fugas, as imaginações: Peixes é suscetível. também ao medo de se perder na imensidão. que desespero, mas desconfio às vezes que Peixes se perde para compor-se, para compor.

provavelmente exagero de afeto: mas Peixes parece mesmo inclinado ao poético, a uma capacidade lírica de articular sentido e emoção, imagem e transcendência. com meu ascendente em Peixes e sendo neta, tia, irmã, nora e melhor amiga de cardumes de piscianos sou suspeita, sou por eles encantada. mas quem resistiria? não é o que fazem com todos que se entregam a sensibilidade?

às vezes entendo que a gente vive numa sociedade sistemática e rígida demais para Peixes. quantas vezes atendo piscianos diagnosticados com rótulos diversos, dos psiquiátricos aos espirituais, e tenho a impressão de que nenhuma tarja dará conta de explicar a um pisciano a sua própria sensibilidade. é preciso muito convívio e cuidado. e às vezes acho mesmo, que em termos sociais, temos muito o que aprender com Peixes, enquanto eles correm cotidianamente o risco do descontrole pessoal ou de servirem de epicentro para os sintomas sociais. signo de somatizações, se algo não vai bem em corpo/espírito/emoção todo o sistema cai, seja em doenças psíquicas ou em problemas de imunidade.

dotados de humor como todos os signos mutáveis, a mesma dispersão que às vezes atravessa seus calendários é a diversão que consagram, por não terem medo da falta de sentido, tudo está tão interligado que também são capazes de dar sentido a tudo. são os reis do nonsense. e quem diz que Peixes é desligado não sacou nada. estão é ligados noutra respiração, seja a própria, seja da consciência vegetal ao lado, a observação de um chacra ou de um cartão postal. Peixes viaja.

um dos signos ligados ao êxtase, Peixes é a falta de fronteiras entre os corpos, os planos reais e imaginários da vida, o que não faz sentido pra Peixes é tentar controlar as sensibilidades em certo e errado. Peixes pode nos ensinar que se tratarmos as coisas objetivamente chegaremos cansados de tanto pensar. e que pensar ainda não é sentir. ou seja: relaxa.

Peixes atravessam todas as finas camadas das energias vivas, penetram fluidos em cada sensação e sentem, sentem a existência de cada ser (i)material dos espaço-tempo. e fazem tudo isto de modo passivo, quer dizer, sem perceber que são atravessados por tudo que atravessam e travessia, travessia: Peixes são os vínculos, os transmissores da simultaneidade.

todo Peixes é uma coragem rara, uma coragem terna e delicada: a coragem de ser sensível.

quinta-feira, 9 de março de 2017

De madrugada meu pai me enviou um poema
e sonhou com a minha bisavó que gostava de plantas e o marido criava cavalos
minha avó morreu nas minhas mãos
minha avó tinha ouvido absoluto
minha mãe tem fobia de encontrar um bloco de carnaval no meio da rua
já meu irmão se incendiou
e minha sobrinha faz planejamentos de organização dos brinquedos
hoje é aniversário da minha tia
minha irmã trata muito bem pessoas que não são loucas o bastante
meu tataravô morreu queimado pelo fogo que ele mesmo ateou e voltou pelas suas costas
há quem venha de Aruanda
e meu marido vai pras ilhas Maurício
meus padrinhos mudaram ontem para o Brasil
meus amigos vão ter uma filha
dia desses leram meu livro descendo o Amazonas
meu professor tem se transformado
muitos dos dias tem me escrito
as pessoas
todos os dias me procuram
meu amigo terminou seu disco
meu amigo saiu do grupo
meu amigo vai lançar seu livro
meu amigo conseguiu um emprego
e só os céus sabem como ele é miserável agora
minha amiga comprou um apartamento e não sabe onde vai viver
minha amiga vai cantar na Bélgica
e não sei bem quando a minha amiga volta da Polônia
minha amiga está novamente apaixonada por ela
uma menina que conheço deu um basta no ex-machista e eu torço pra que não voltem
enquanto meu amigo tem feito cerâmicas com fogo pra impedir que o luto avance sobre ele
em cima da mesa do escritório meu sogro está em Goa, em Angola, nas fotografias
meu irmão está em Belém
minha amiga saiu do retiro e marcou de ler seu mapa
vamos nos encontrar pra tomar qualquer tipo de chá
meu amigo contou que sua filha viu unicórnios entre os emojis usados no seu celular e disse que o ama papai
eu mesma escolho bem as minhas figurinhas
meu sobrinho está quase adolescente
meu sobrinho tem uma namorada de nome sabedoria
minha sobrinha entrou na faculdade
meu avô comia ovo todas as manhãs como eu que hoje não comi e fiquei mau humorada
meu avô era pai de santo livre como ninguém
e eu herdei muita coisa
mas meu mau humor é algo que não desejo (a quase) ninguém
neste momento mesmo alguém que conheço deve descer em Santa Apolônia
e pensar que a vida é tão difícil mas essa luz sem conhaque a nitidez dos dias
ilumina
não sou ninguém
sem eles e com eles
sou alguém a estar neles.


domingo, 19 de fevereiro de 2017

o tempo que se leva para atravessar o oceano
não é o tempo que se leva para uma vida se compor
e é sempre tempo de se abrir janelas
para o vento levar os papéis velhos
as intrigas que mofam a todos
é o tempo de se escorrer nas réstias da luz
atravessar esta cidade que não me reconhece
os mais antigos medos da desaparição
do amor, dos vínculos e da gratidão
eu posso dizer
de certeza
que estão todos aqui
embora em menos silêncio do que o necessário
nos faremos ritmo e salsugem
e as coisas que acontecem são as coisas que acontecem
terríveis aventuras
chamem de acaso ou coincidência
a solidão se desmontando e oxidando
o tempo que nos resta até a escuridão.
a terra se abra para quem a pisa
com força
capaz de alterar o mundo
perde a rotação
na órbita que não girou a tempo
no tempo presente
a gravidade se perde de tanto que perde você perde a capacidade de ver
achando que perdeu um olho
como eu perdi
perdi a capacidade de decidir
qualquer coisa
pois as coisas decidiram por mim
tão rápida e alheia a realidade
encarada sem ênfase
que dor nos ombros
mas pelo enorme senso de realidade
não perdi meu passaporte
e pude entrar com tudo
em todas as coisas
e não perdi a sorte
de ter em todas as coisas
sorte
embora essa dor nos músculos
e ao descer a rua a certeza de que iria cair
na rua do sol ao rato
não iria escorregar
eu iria cair
cair na mórbida nitidez desta estação
em que com a sua força
o mundo foi parar
nós mesmos, com tanta força
desistimos
e eu insistia em levar flores
para alguém que acolhe
dos acontecimentos
o só poder estar
no eixo vivo desta carne
tensa assustada e comunicante
sobretudo de olhos ouvidos
o coração muito aberto
não por opção rasgado inteiro
pleno de necessidade
presente
É bom que nosso amor vá ganhando
assim uma dimensão humana
que a gente não tenha que atravessar paredes
mas só as correntezas, as colinas
os dias em que neblina na descida
ao subterrâneo de nós mesmos
— e, sem dilaceração, convivemos.
A curva dos dias que se tornaram anos
mostra que o ponto de um ponto ao outro
em nada retilíneo
desenhou um círculo entre nós.
Isto a cada dia me acalma
conforme as fúrias e suas ventas
arrancam aos pedaços
os horizontes, as perspectivas
com pouco ou nenhum interesse
no que nos acontece
tenho todos os dias as mãos cortadas.
Dia desses fritava um hambúrguer
quando o fogo subiu pra cima da frigideira
e aquele pequeno incêndio que eu vi
eu pude assoprá-lo sem precipitação.
Confesso que, quando deu certo, tremi
um pouco nas bases, mas não deixei
que se instalasse o desespero
dos que estão imersos no destino.
Um dia é cedo no mesmo dia é tarde
e a ventania não alivia o calor.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017

A arte de se relacionar
se passa pelos olhos que veem
o que os gestos consentem
tácitos e benditos
sejam os explícitos
os que podem ser ditos
os que não se calam
os precipícios e os precipitados
discursos rios
sejam as fronteiras
nós os dois
despencando.

A arte de se relacionar relaciona-se
casualmente e despistada
com as gentes interiores
que dão muitos palpites imaginam
e fingem que esquecem
tantas as coisas as gentes interiores
ficam pensando.

A arte de se relacionar inclui
todos os assuntos
poderem se relacionar
uns aos outros ligados
existem pronomes inextinguíveis
respirações imprevistas colocações
vírgulas e pontos
a exclamação a interrogação
a vírgula de novo; e o fundamental
travessão, com o qual você pode
até falar neste poema
vem aqui, vou te mostrar
assim:

—                 .

O que você fala neste poema
eu não sei e se eu soubesse
também não falava assim
tão alto pra toda gente — ouve
que só me interesso pelo que é seu
é verdade eu mesma não sei
se sou ambidestra
ou se isto é ser só
mais uma pessoa torta
na arte de me relacionar
sou intransferível
insensível e coxa
uma flor da moita
o escuro zumbido
a contramão um retrocesso
serei eu desvio que destino
do acaso esta intempérie
chuva se fazendo na curva
da anca um arrepio que avança
na coluna, a cintura, tua cabeça.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

depois de meses sonhei com a minha avó, ela saindo de dentro duma sala de velório, vestida num manto azul, me dizia: "se não há pressa na morte, por que tanta pressa, por que tão apressada na vida?" e me dizia algo sobre relíquias, os seus valores, os modos de distinção entre elas e o lixo "que não é desperdício". ainda antes de se despedir dizia: "o amor é uma caixinha de música dos pulmões, é saber tocá-la com a respiração".

domingo, 12 de fevereiro de 2017

atualmente nos dias que quero descansar eu os passo reescrevendo os poemas do novo livro que não estou escrevendo e encontro uns versos tão inesperadamente cafonas como:

"o vácuo túnel disto denso dista inúmero número"
"onde é misturado nas línguas ondas salinas"
"você poderá mastigar o nada pois o tivemos em comum"


exagerados versos, como eu os esperei voltarem

*

engraçado, me lembro de bem criança olhar demoradamente os objetos que a minha mãe e também a minha avó guardavam em cima de suas cômodas, objetos tão diferentes, gostos e casas tão diferentes, num mesmo gesto em comum. eu passava imenso tempo a pegar neles, a observá-los como desconhecidos e pequenos exageros cheios de enigmas cores e desejos que os faziam ser relíquias para quem os guardava. minha mãe a minha avó, que tinham coisas que eu não sabia como entender o que teriam exatamente de bonito pra elas, mas que, justamente, por serem apreciados tornavam-se inesquecíveis pertences ligados ao afeto e (só hoje penso) tão próximos de uma cama, eróticos, como não? associo alguns dos versos que ando escrevendo a esses objetos.

*

estou contente de estarmos em 2017 neste ano que — ainda é fevereiro — já me alterou horizontes levou pessoas, isto sem falar na vida pós-golpe & nuvens de chumbo interstelares vem do subsolo deste país, vem da américa do oriente médio e do lado de lá também não está sendo fácil & vejo que estou escrevendo um livro sem respostas pra este tempo amargo presente - - - ou isto ou ele se passa no duradouro de todos os tempos no tempo: o amor & assim em todos os poemas se encenam os desejos de um corpo de mulher que, como todo corpo, se expressa como bem entender.
vinda do além-mar de uma destroçante experiência de proximidade com a morte (e alguma vez a morte não arrancaria de nós os pedaços?) e com a sensação de que o caos entrópico dos soterramentos tinha invadido algo ao redor de mim mesma, ao voltar & sem nem perceber abri todas as malas de uma vez espalhei pratos depois de comer por todos os cômodos nem me deixei jogar os kleenex fora reguei as plantas alimentei os gatos fumei três e coloquei música alta pra tocar & então percebi que, territorialmente, em questão de menos de 24h, não tinha um pedaço da minha casa que não estivesse bagunçado e terrivelmente complexo de organizar. tendo me dado conta disso, finalmente relaxei: o território era meu novamente, reconquistado, o espaço do caos havia tomado o lado de fora, o lado das coisas, um fora observável e, quiçá, talvez até legível. alguns a isto chamariam de lua em touro, outros de intuição; mas eu mesma tenho que ir, que agora estou a limpar as coisas.

sábado, 11 de fevereiro de 2017

estou sentada em cima das correspondências
burocráticas que se acumulam
o serviço de finanças quer o registro da sua nova morada
e eu ando especializada em não me assustar com nada
embora passe o tempo todo assustada
como se um dragão com sua língua de fogo
arrancasse o topo da minha cabeça
e num golpe retrocesso
não alcançasse a minha felicidade
mas retirasse do céu a lua que esfria
o topo das nossas cabeças
quando olhamos admirados ou não pra ela
tão antiga
a lua eu
então nunca mais arrefeço
com meu corpo que avança
e descansa onde der
em toda parte

domingo, 29 de janeiro de 2017

Posso te esperar a tarde inteira
atravessar você — o precipício
ou te chamar de canyon
e colocar uns pássaros voando nele.

Posso te mostrar a parte de dentro
das coisas, da carne — posso me rechear
inteira de cuidados, lanças e perfumes
e desmontar à tarde todas as coisas.

Posso inventar-nos um desfecho
te chamar de ilha, charco, travessia
esquecer eu não posso — posso
dizer que eu irei me lembrar.

Posso perguntar pelo tempo
e assim conversaremos sobre o breu
normativo & inconstitucional desses dias
e de como não seremos derrotados.

Um pelo outro, talvez, não.
 

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